O encontro frustrado






Professora

É chegado o momento tão esperado. Sento-me à mesa. Abro a gaveta e dela tiro uma folha de papel. Pego a caneta que está no porta-lápis sobre a escrivaninha. Olho de um lado para outro com o intuito de lembrar o que mais preciso para realizar o tão sagrado ato de escrever. Ah! Sim! O meu fiel amigo e companheiro de tantas aventuras textuais. Levanto-me, pois, e pego o meu Aurélio, que se encontra espremido entre A Clarice Lispector e o João Cabral de Melo Neto, num delicioso sanduíche literário, capaz de deixar até o Davi Moura com água na boca.

Volto à mesa. Tudo pronto. Após o ritual inicial, é hora de enfim começar.

Começar? Sim, vamos lá! Escrever é preciso...

Observo, então, aquela cândida face de papel ali na minha frente. Deitada e desnuda, ela me olha feito uma amante que espera ser desvirginada pelo seu amado. Ficamos segundos, minutos assim, entreolhando-se como um casal recém enamorado. E nessa paquera que parece eterna, comporto-me com a timidez que me é peculiar nos primeiros encontros amorosos. E destarte continuo ali, estática, imóvel, inerte.

A folha continua me olhando. Silenciosamente, me pede um poema, um conto, um bilhete, uma lista de compras que seja. Mas o que posso eu escrever, quando a mente perdida divaga no nada, buscando por algo que sequer sabe o que é? O que faço, se a caneta, diante da inalterada página, dança num bailado sem ritmo e sem par?

E agora? O que fazer? O que dizer quando as palavras escapam por entre os dedos parecendo fugir do papel que, palidamente, me encara com um olhar assustado e inquieto de quem anseia, há tempos, pelo especial momento de ser totalmente submerso por uma avalanche de versos?  O que digo eu à página em branco que, impaciente, procura em mim o seu existir?

Não é o rasgar e o amassar que lhe tiram a vida. Ela sabe que vem ao mundo sozinha, branca, vazia, sem vida. E sabe também que apenas as palavras são capazes de encher de cor o seu viver. Só as palavras podem dar sentido ao fato de ser o que é.

Mas as palavras não vêm...

Pergunto-me, pois, por onde andarão todos aqueles sentimentos que por tantas vezes inflamam meu peito, me roubam o ar e apertam a garganta querendo sair. Aonde foram parar as lembranças daquela noite enluarada na praia, da viagem de férias, do telefonema no meio da noite, do vizinho chato ouvindo Pink Floyd no último volume, do vendedor assanhado do mercadinho da esquina que sempre tenta pegar na minha mão enquanto me passa o troco?
Olho mais uma vez para o papel. Só então percebo que seu aspecto já não é mais virginal. Sua face, antes pura, descobre-se agora maculada pelo violento garatujar de minha caneta. Em seu corpo, só riscos que nada dizem, nada mostram, nada são.

Daquele único e especial encontro o que restou?

Rabiscos... Só rabiscos... Nada mais.

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O encontro frustrado de Rokatia Kleania é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 UnportedBased on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.comPermissions beyond the scope of this license may be available at www.blogdaprofessorinha.blogspot.com.

Comentários

  1. Meu texto de amanhã foi fruto de uma experiência desse tipo. Tinha escrito outro texto e, pela pressa, acabei fazendo porcaria. Dormi, relaxei e gostei bastante do outro resultado. A síndrome da folha em branco é terrível. Eu até estava com a ideia de fazer um similar! Ficou óóóótimo e me encontrei totalmente ai!

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  2. Acho que fomos surpreendidos pelo terror da folha em branco. Também estes dias, depois de uma conversa com marido, desabafei essa dor de escrever. Pense num processo sofrido...
    Mas olha, vamos ser franca, seu texto revelou com toda delicadeza e sutileza esse encontro que temos com o papel em branco. O mais incrível, vc torna essa angústia doce através da harmonia que exala em cada frase...gostei demais do seu texto, viu fessora!
    Grande abraço!
    Regiane,

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  3. É bem isto.
    O vazio. O nada.
    Para mim só não é mais terrivel do que quando estamos "tortas" de atividades, e as emoções brotando em forma de letras, doidas para se derramar no papel, mas o momento não é oportuno.
    Comigo acontece muito isto.
    Fico o dia todo "babando" histórias, e quando chega a hora do encontro com a folha em branco: Nada!

    Beijos, texto ótimo!
    ASS Klas.”

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  4. Meu processo é diferente. Acho q não escrevo, psicografo...rs... Na verdade o que acontece é q a ideia de um texto tem q me seduzir, ela tem q se desnudar diante de mim e dai, so depois de nos deiarmos, eu a escrevo. Qdo busco a folha a historia ja esta pronta. Espero q continue assim, ao menos na escrita é assim q acontece...
    Texto lindo!
    Bj amada
    lete
    Prima ASS

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