Éramos felizes e sabíamos

Brincadeira de criança - Aracy

Outro dia, uma forte chuva caiu e, como já é de costume, em ocasiões como essa, houve uma queda de energia na terra dos Paiacus. Ficamos eletricamente desligados durante um bom tempo. Logo que constatou a ausência da energia elétrica, minha sobrinha exclamou:
- Agora pronto. Nada pra fazer! 
- Como assim nada pra fazer?
- Ora, tia, sem energia não tem TV, não tem internet, não tem vídeo-game, não tem diversão, não tem nada!
Ao ouvir o desabafo da minha sobrinha, fiz uma rápida viagem de volta à minha infância. Fechei meus olhos e me vi pequena. Sim, eu sei. Ainda sou. Mas (pasmem!) já fui menor, bem menor. E, assim, pequenina, magra, de perna fina feito uma seriema, me encontrei numa época, nem tão longínqua assim, em que não dependíamos de energia elétrica, nem de tecnologias para sermos felizes. Era um tempo em que não possuíamos vídeo-game, mas tínhamos pião, peteca, bola de gude e bambolê. Um tempo em que não havia computador, celular, nem internet, mas estávamos sempre conectados através do telefone-sem-fio, do passa-anel ou do coreográfico escravos de Jó e ainda navegávamos no divertido balé da dança das cadeiras e do chocolate inglês.
Naquela época, a menina de perna fina não tinha TV Full HD. Mas quem disse que precisava? Bastava um sonoro “vamos brincar?!” pelas calçadas e logo toda meninada da rua chegava para juntos vivermos grandes aventuras de polícia e ladrão, pega-pega, índio e cowboy e esconde-esconde. E não havia emoção maior do que percorrer as ruas do bairro em busca de um esconderijo quase tão secreto quanto o da arca perdida do Indiana Jones. Para dar pause neste barulhento e divertido vai e vem de meninos, só mesmo os gritos das mães, desligando a garotada de mais uma sessão de peripécias.
Minha cruzada me levou até os chuvosos dias de minha infância, em que nos banhávamos de alegria, aproveitando cada pingo de chuva que caía. Mas se não queríamos ou não podíamos sair para tomar um bom banho de chuva porque nossas mães não permitiam, não havia problema. Recorríamos aos velhos e conhecidos jogos. Não esses eletrônicos sem graça, onde se joga tão somente na gélida companhia de uma máquina. Muito mais divertido era jogar dama, dominó, ludo ou pega varetas. Entre uma jogada e outra, podíamos interagir, conversar e zoar o(s) adversário(s). Assim, a diversão estava sempre garantida. Não importava se ganhávamos ou perdíamos, pois no fim tudo ia acabar mesmo em bate-boca ou em boas gargalhadas.
Em meu tour pelo passado, me flagrei também brincando de casinha. Aquelas verdadeiras casas em miniatura que, com a ajuda de minha tia, eu mesma criava. Eram mesas, armários, sofás, camas, cadeiras, tudo construído com caixas de fósforo, tampinhas de refrigerante e embalagens de creme dental. Não há casinha da Barbie que chegue aos pés daquelas que eu arquitetava, montava e desmontava. A alegria em produzir era tão grande que brincar com a casinha era só mais um detalhe.
De repente, me senti catapultada e, quando dei por mim, já estava voando alto como as várias pipas que soltei. Lá de cima pude ver o meu quintal, onde eu era rainha, subia em árvore, fazia bonecos de argila e jogava bola com o meu irmão.  Aproveitando a viagem ainda parei pra brincar de garrafão, bandeirinha e queimada. Fui até o céu com a amarelinha. E quando já me preparava para saborear uma deliciosa salada mista, não é que a energia elétrica voltou?!
Pois é. O sonho acabou! Em mim, ficaram apenas as saudades de um tempo em que éramos movidos pela imaginação. Um tempo em que éramos humanos e não seres virtuais conduzidos por máquinas que não suam, não cheiram, não afagam, não respiram, não vivem. Saudades de um pretérito mais- que-perfeito em que éramos felizes e sabíamos disso.

Professora

Licença Creative Commons

Permissions beyond the scope of this license may be available at www.blogdaprofessorinha.blogspot.com.



Comentários

  1. Rokátia,
    esse saudosismo mexeu muito comigo. Vivi essa época em que tudo parecia mais humano e fraterno, "não seres virtuais conduzidos por máquinas que não suam, não cheiram, não afagam, não respiram, não vivem." Isso mesmo. Não vivem. Esse percurso literal, tão bem construído que vc delineia, nos faz tocar, com dedos de saudade, um passado recheado de cumplicidade e afeto.
    Belíssimo texto!
    ASS Reina.

    ResponderExcluir
  2. Bárbaro!Obrigado pela carona nessa viagem maravilhosa,onde a interação com o outro tinha significado singular!

    ResponderExcluir
  3. Melembrei agora de Cai no Poço, rsrs. Essa crônica me fez desenterrar uma que escrevi no dia do último apagão. É impressionante como as perspectivas mudam se acaba a eletricidade, parece que o mundo acaba e foi justamente esse o desespero do meu vizinho. Vai ser minha próxima crônica. Excelente, de novo, arriégua!!!

    ResponderExcluir
  4. Como nosso Urubu-mor diz, sou da geração Y, mas brinquei de tudo isso ai do texto. Corri na chuva, fiz bonecos de argila, fiz castelos de areia. Só não subia em árvores pq sempre fui meio gordinho! Amei cada palavra!

    ResponderExcluir
  5. O escuro nos remete a um não poder de visibilidade q pode nos fazer enxergar mto além...
    Confesso não ter mta saudade da infancia, já q tinha mta dificuldade em me relacionar. Era mto tímida. Introspectiva. Meus filhos, mesmo no meio de tanta parafernália eletronica, são mto melhores relacionados do q eu nos anos 80...rs
    Belíssima crônica.

    Abraço grande

    ResponderExcluir
  6. Parabéns, texto maravilhoso.
    Voce nos levou junto contigo e eu saltei da mesma catapulta junto ao céu com suas pipas.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

HOMEM DE PALHA [Ensaio sobre o palhaço]

Minha amada bruxa

O mimo que ele não trouxe