Estou cansada
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Metamorfose de Narciso - Salvador Dali |
Cansada do ar sempre pesado, cansada dos pés sujos de barro.
Cansada de cambalear nesta rua suja, com roupas igualmente sujas e tentar manter intacta uma mente limpa.
Estou cansada de esticar estes panos rotos, sobre este colchão velho, jogado neste chão esburacado.
Estou cansada da água cor de barro, cansada da lata para o banho e do esgoto fedorento.
Estou cansada dos restos de marmitas e dos lanches dados com desprezo.
Estou cansada dos cadernos velhos, do lápis sem ponta, da caneta ressecada.
Cansa-me a alma nova, esta vida velha de dias duros e noites famintas. Cansa-me o esmolar, cansa-me o olhar de pena.
Cansei dos tapas, dos chutes, do escárnio.
Cansei de sentir saudades de minha mãe e de ouvi-la sendo chamada de puta.
Desisti de todos os dias tentar me convencer que não há do que ter canseira em uma vida sem ocupação.
Cansei de tentar motivação nos livros velhos que ganhei nem lembro mais de quem.
Cansei de acreditar que minha letra bonita irá um dia me fazer alguém. Cansei da vida, se é que já tive uma.
Desculpem.
Desculpem desistir assim, sem tentar.
(Este bilhete foi encontrado ao lado do corpo de uma menor, vítima hipotermia, nas ruas de São Paulo) - (Ficção, mas podia ser verdade.)
Secretária
Estou cansada de Eliana Klas é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com.
Existe o termo chamado "Alma gêmea literária"? Acho que a Klas é a minha. Em sua simplicidade em dizer que não escreve profissionalmente, vejo uma capacidade tão gigante e, ao mesmo tempo, uma delicadeza e sutileza que me deixam encantados. Além disso, identifico muitos trechos que me sinto escrevendo. Perfeito!
ResponderExcluirSe a Klas é a alma gêmea literária do Davi, é minha alma gêmea política. Tirando o suicídio, que não está nos meus planos terrenos ou metafísicos e do desaforo com a mãe - porque de onde eu venho quem o fizesse teria obrigação de ser morto a faca -, parte desta carta poderia ter sido escrita por mim.
ResponderExcluirQueridas almas gêmeas,literária e política:
ResponderExcluirno blog "...eu todos os dias" eu menciono que existem vários "eus" em meus textos.
O "eu" que há em mim e o "eu" que vejo pela vida e pelas ruas.
Esta carta não é minha.
Eu sinto aquela dor quando olho no chão da Rua Sete de Abril(no Centro da Capital de São Paulo) todos os dias.
Mas jamais desacataria minha mãe, risos, e juro que foi dificil demais escrever uma carta de alguém que desistiu...
Saudações Aspirínicas.
O seu texto revela a vontade de não ser mais e isso, às vezes, aterroriza e nos espanta. Ficamos frágeis diante de casos deste tipo e nos achamos fortes diante deles porque nos vemos incapazes de tamanha coragem ou covardia. Acho que o nosso limite é a loucura e, infelizmente, acho que boa parte da civilização está apta a "desfrutar" dela.
ResponderExcluirVou deixar para vc um trecho que fiz há algum tempo pq acho que tem relação com o seu texto:
"O equilíbrio é um fio
que se rompe ao menor sopro
dos acordes desarmônicos
da IN-SEN-SA-TEZ". (Regiane Santos Cabral de Paiva)
Abraços querida!
Concordo com o Davi. A Klas tem uma intimidade com a escrita que é difícil acreditar que não seja profissional. Sua sutileza ao abordar temáticas tão mórbidas, como a de hoje, tornam a leitura densa e ao mesmo tempo leve. Difícil descrever. Melhor mesmo é ler. Parabéns!
ResponderExcluirGostei por demais...Tem mta influencia da poesia em teu texto. Os paralelismos de estruturas. A recorrencia a imagens extremamente significativas. Porra! Tocante.
ResponderExcluirparabéns Klas...
bj
prima ASS