Frango de padaria




Ser humano é bem legal.  É... tem lá suas vantagens estar no topo da cadeia alimentar. Mas confesso que há dias em que eu desejo ser um frango assado de peitos fartos, dourado e bem brilhante, girando vagarosamente num espeto de assadeira elétrica da padaria. Sedutor. E assim ser objeto de desejo de seres das mais variadas espécies: desde a mosquinha insistente no seu sobrevôo, ao cão de olhar pidão e fixo, até a senhora de dedos rechonchudos com sacola de feira, que depois de acompanhar o giro por umas duas voltas, me escolhe, pois sou perfeitamente digno de saciar o desejo da sua fome.
Por vezes também desejei ser os morangos da torta de morango que eu vi na vitrina da doçaria. Claro que seria daqueles bem vistosos, gordos e vermelhos. Os mais atraentes. Os adultos normalmente me devoram numa abocanhada só; já as crianças, não, elas me guardam para o final, além de lamberem os dedinhos com um prazer sem igual.
cereja do Martini é outra coisa muito aprazível de ser. Ela costuma dançar no vai e vem dos goles provocando um jogo sedutor de ora quer ora não quer, mas por fim eles sempre me devoram... Delícia...
Queria ter nascido só para provocar prazeres. Mas minha humana condição não permite. Tomara, então, que ao menos em minha morte eu dê algum prazer aos vermes, que eles tenham fome de mim e me desejem como a um prato mal passado de picanha.


Professora


Comentários

  1. ...temos o costume (automático, eu diria!)de guardar o melhor pro final. Não sei até que ponto isso é a melhor coisa a se fazer, no entanto, eu diria que nos guardamos pra mais tarde a fim de que o melhor já comece com o ritual da espera. E saboreamos o pensamento de ter adiante o prazer em nossas mãos. E trocando em miúdos, eu já ouvi muita gente dizer que come a bolacha e depois o recheio...só pra ter a doce ilusão de que o melhor já lhe pertence desde cedo. Desde o desejo.

    "Queria ter nascido só para provocar prazeres."

    Adorei!

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  2. Prima ASS,

    ‘Metamorfosear-se’, essa é a arte desse texto. Sabe, isso me fez lembrar o miserável Gregor que, em Metamorfose de Franz Kafka, se transforma em um inseto horrível para que o seu sentir pudesse ser materializado e, assim, fosse revelado a sua condição quanto homem. Em Frango de padaria não é diferente! O “eu”, representado pelo narrador personagem, precisa passar pelo processo da metamorfose... para quê? Acredito que as descrições desenharam perfeitamente as intenções. Aliás, deslizamos e sentimos todos os traços expostos como se fosse nosso desejo também.

    Não tenho dúvida de que muitos de nós, motivados por forças externas ou internas, já pensamos em ser qualquer coisa que não fosse gente. Talvez, eu quisesse ser o arco-íris... aparece quando parte do céu ainda está escuro, com nuvens de chuva, ou perto de cachoeiras...

    Isso é o que nos move: o desejo de ser, seja o que for, mas ser!
    Bjs, aspirina reina!

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  3. Pode parecer tolice mas fiquei com gosto sabe de quê na boca? De solidão.

    Parabéns pelo texto.

    Beijos da Quinta Aspirina.

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  4. Quem não queria ter nascido para ter provocado prazeres?
    Por sinal ,ótimo texto!Amei!

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  5. Tem uma fluidez neste texto muito interessante. É um dos meus favoritos da Arlete. Gosto de material transcendente e ousado, talvez pelas minhas influências da ficção científica, culpa de Bráulio Tavares, Pablo Capistrano e outros sujeitos. Me identifico com a forma e processo criativo.

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  6. Assim é que eu amo esta escritora... todo dia...

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  7. Essa mulher é linda e escreve texto mais lindo ainda!!!
    Te amooo

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  8. Depois de ler esse texto fica difícil se contentar em ser apenas gente. Eu queria ser mais. Bem mais... Queria ser o texto da Arlete só pra dar ao leitor o prazer da boa leitura. Parabéns, querida!

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