Menino


Naquele dia ele saíra pra sua caminhada mais cedo.

Acordara com o peito ardendo... Ardendo de uma saudade inexplicável de alguém que ele não conseguia se lembrar quem era.

Tinha certeza que devia ter sonhado com alguém e mesmo sem conseguir se lembrar com quem, a sensação de perda o incomodava demais para continuar na cama...
Desceu os degraus pausadamente. Suas filhas sempre ralhavam com ele quando descia os degraus saltando de dois em dois...
Aquilo também o incomodava: ser tratado como criança era ainda pior do que ser tratado como velho.
Mas naquela manhã, por algum motivo, ele entendeu que devia descer devagar...

O sonho, aquele que ele não lembrava, lhe martelou os pensamentos enquanto comia uma fruta e coava o café.
“Pretinho” era assim que suas tias confabulavam entre elas na hora de tomar o primeiro gole do café recém coado.

Município pequeno, no meio de algum lugar, ou de lugar nenhum, quase todas as moradias de sua meninice eram de várias casas dividindo um mesmo quintal e, por certo tempo seus pais moraram no mesmo quintal com as tias...
E era assim de manhã e de tarde, quem coasse primeiro o café, naqueles grossos coadores de pano, gritava pra da outra casa: “Quer tomar um pretinho?”...
Nem sabia o porquê de se lembrar daquilo, mas a memória correu solta ao aroma do café que agora, ele próprio coava... Sem ninguém pra lhe fazer companhia.

Sorveu o líquido com pressa, como que pra espantar as lembranças e saiu pra caminhar.
A saudade, aquela inexplicável sensação de lembrança, perda e presença seguiam com ele o caminho.
Ele sabia que devia ter sido um sonho.
Caminhou pelas ruas lembrando de suas musas.

A finada, companheira por anos, não lhe despertaria esta sensação... Quando ela se foi, os dias sempre iguais de dor e morfina já lhe corroíam até a alma e foi um alívio seu último suspiro.
Enterrou-a na certeza do dever cumprido. Esteve com ela até o fim. Mas os anos de saúde não foram tão bons a ponto de querer morrer junto.
Depois disto resolveu aproveitar seu charme cinquentão e, aí sim, vieram musas capazes de deixar saudades.
Mulheres de todos os tipos. Mulheres que marcam e se deixam marcar.
Boas lembranças.
Lembranças de volúpia e prazer, mas não de amor.
Portanto nenhuma delas devia ser a causa do seu “desgaste pós-sonhos.”.

Não se deixou prender, afinal, ao longo dos anos tudo o que fez foi cortar vínculos.
Tão logo pode, deixou pra trás o Município de nascença, o quintal com as tias e seus “pretinhos”; logo acostumou-se a visitar a mãe só no Natal. Depois, nem isto.
Mandava um cartão, um cheque e tava tudo certo.
Aquele menino levado, que olhava pro céu procurando pipas, ficou para trás e ele nunca voltou para buscá-lo.
Incomodava o olhar da mãe, que sempre o fazia lembrar o menino que fora.

...sentou-se em um velho banco do passeio. Foi quando, vindo de longe, viu algo que fez seu peito se torcer:
Um cãozinho.
Um cãozinho todo branco e com uma máscara preta ao redor dos olhos e orelhas.
Era igualzinho o cãozinho de sua infância.
Sem raça, vira-lata, seu pai o trouxe em uma caixa em uma fria noite de inferno.
Cuidou dele, o aqueceu com seu próprio corpo, lhe catou as pulgas, cuidou pra que tivesse água fresca...Mais tarde, correu com ele, rolou com ele, se sujou com ele.
Um dia, manhã de sol, bateram à porta para avisar que o um caminhão de “Coca-Cola” havia atropelado o seu Menino.
Ficou preso na roda e rodou junto com ela.
Levou o bichinho pra um terreno baldio em frente de casa... o enterrou ali.
Era um terreno rebaixado e no fundo passava um córrego.
Ali fez uma linda sepultura e deixou seu bichinho.
Na manhã seguinte voltou e na outra também.
Qual não foi seu horror quando, na terceira manhã, encontrou a sepultura aberta e ,lá embaixo, preso em galhos na correnteza do córrego, o corpo do seu amigo.
Um garoto já grande, conhecido por suas malvadezas, desenterrou e jogou-o no rio...Mas o corpo não foi. Ficou preso.

E durante um tempo, que ele nunca soube dizer quanto, mas que nunca esquecerá o quão longo e doloroso, ele voltou lá todas as manhãs...E viu seu amigo se decompor no rio.
Nos primeiros dias chorava.
Chorava ali na beira do córrego e chorava a noite em sua cama.
Depois o choro secou.
E secou a alma também.

Nunca mais chorou por mais nada.
Não chorou quando se formou.
Nem quando casou.
Nem quando os seus pais faleceram.
Nem mesmo quando as meninas vieram.
Nem mesmo, mais tarde, quando os netos lhe trouxeram um nó na garganta ao falar “vovô”...

...De repente, sozinho ali, vendo aquele cãozinho passar, ele lembrou do sonho.
Sonhara com o Menino. Era este o nome do seu cãozinho.
Então, ali, sentado, ele chorou...
Chorou copiosamente.
Chorou e bebeu suas próprias lágrimas; chorava e sorvia as lágrimas com gosto.
Deixou-as cair até lhe lavarem a alma.
Alma pesada.
Alma de quem nunca soube se dá por inteiro.
Alma que só soube sentir saudades de um cãozinho.

...
Poucos dias depois, quando os netos foram lhe visitar, encontraram-no rolando no jardim, com um filhote branco e preto.

E nos seus olhos, eles viram um brilho diferente quando os chamou para se unir a brincadeira e lhes dizer que aquele filhote era um presente para eles...e que ele iria todas as tardes visitá-los: aos netos e ao filhote...


Secretária

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Comentários

  1. Quinta Aspirina,

    Seu texto se aproxima muito da estrutura das fábulas, dos contos infantis que permeiam o nosso imagirário e são muito bem recebidos pelo público, tanto adulto, quanto infantil.
    Ainda leio bastante esse tipo de texto, e, confesso, acho q nunca vou deixar de ler, porque neles há uma porção de magia, de encantamento e de poder de transformação dos persongens, que me emociona muito, assim como a figura renovada do seu velho-menino.
    Parabéns!

    Prima ASS

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  2. Klas,

    Quando terminei de ler seu texto me ocorreu o adjetivo sin-ge-lo. Isso, algo que remete ao que é puro, não corrompido. O mais magistral é que sua narrativa permite que mergulhemos na solidão do personagem e soframos com ele de um vazio aparentemente explicável. É justamente isso que seu conto faz, nos oferece magia, sensibilidade e profundidade. Suponho que a intenção do texto não seja a de transmitir “uma moral da história”, a ponto de me remeter a uma frase que uma vez encontrei ser atribuída a Alexandre Herculano: “Quanto mais conheço os homens, mais admiro os animais”. O peso do texto está justamente no alvo onde se detém o sentimento. Depois dos três pontos finais, o leitor não ficará isento da saudade, pois é algo perdido em algum lugar que passará a ganhar voz na lembrança esquecida...
    Gostei demais de seu texto.
    Aspirina reina.

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  3. Klas,
    Que bela narrativa! Envolvente, singela, sutil, inocente. Impossível ler e não se emocionar. Difícil ler e não sentir no peito a dor do choro sufocado e o alívio de se libertar e ser de novo um menino. Lindo!

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  4. Gostaria de não lhe conhecer para identificar em seus textos a delicadeza de um anjo. Essa costura de sensações construída no tempo da personagem que vai e volta no seu mundo de lembranças é de uma técnica indizível. Tenho a sensação que não sou justo ao comentar os seus textos porque não consigo ser passional. Vou dizer apenas que gosto. Ponto.

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