A poesia dos salões
Mulher nova da beleza no céu - MIRABELLAR |
Dona Fátima foi uma das maiores descobertas minhas recentemente. Aquela mulher não existe. Assim que ela tocou a minha cabeça, eu soube que seria eterno. Ela me faz lembrar as coisas práticas; as práticas coisas do amor substituído pelo platonismo do amor carnal. Há coisas que não deveríamos esquecer como as delícias da pureza do outro. E foi assim que conheci dona Fátima, minha cabeleireira. Nunca vi tanta doçura numa mulher desconhecida. De uma calma incomum às cabeleireiras, frenéticas, sempre frenéticas e tão bem informadas.
Talvez o meu deslumbre seja incomum, visto o amor que se adquire pelas cabeleireiras e seus divãs. Aliás, é mais preciso informar-se naquela cadeira do que nas redes sociais. Ir ao salão é como escutar rádio.
Da vez que fui, dei conta dos descasos da medicina. Ninguém entende mais de atenção básica do que mulher quando está em salão. Também pudera, a mulher está sempre tendo que ver um médico. Triste condição. Mais uma das injustiças celestiais. Homem só vai ao médico quando a mulher obriga e até o médico acha que ele não tem nada. Homem só tem alguma coisa quando morre.
O salão é como um livro de contos. Cada pessoa que entra traz uma história que se complementa. É talvez o ambiente mais literário de uma cidade, resguardando as exceções. Mas é preciso lembrar que a poesia não está nos catálogos nem nas compilações, embora digam que o “preço do feijão não cabe no poema”. Mas a poesia cabe no salão e é uma poesia disforme como o próprio Gullar ou o Drummond, os mais cotidianos.
Costumava, até então, ir ao barbeiro das barbearias antigas. Acho interessante o ambiente bucólico, as velhas cadeiras, mas nunca gostei das conversas. O serviço é rápido e agressivo. Cortam o cabelo como se rapa coco. Sai-se das barbearias com as orelhas vermelhas e um pouco de labirintite.
Ao contrário, dona Fátima carrega o toque das mães nos domingos de saudade. Ela não tem pressa. É como se em sua vida a vida não tivesse pressa. Possivelmente, isso faça parte do tratamento porque as mulheres que frequentam o salão precisam mais de seus ouvidos de que de seus cortes. Chego a pensar se dona Fátima não estaria apta para a função de terapeuta. Parafraseando a doutora Wirgínia Hofmann, “se não fosse o formalismo cartesiano imposto pelas universidades e seus atores doutores intocáveis [...]”, diria que ela é Philosophy Doctor: uma PhD sem tese.
Desconfio que não é somente a beleza que importa às mulheres e é dessa certeza que se constitui a vida. Ora, o que seja a vida senão como a tal, uma torrente de incrustações epicuristas. A leveza do ser é o próprio ser e só as mulheres sabem onde se encontra essa irreflexão. É preciso paz para se submeter à dor pela estética.
A mulher é passional sempre, por isso vai ao salão para chorar enquanto faz a unha. Do mesmo jeito, ela se condensa em dor e endurece. Fecha-se para nunca mais voltar como na infância ou retorna à vida com a esperança dos desafogados. Só ela é capaz de suportar as fraquezas do outro e ainda achar tempo para morrer de amor.
Jornalista
A poesia dos salões de José de Paiva Rebouças é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported.
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A beleza de um texto se faz e refaz não pela técnica ou pela quantidade de termos eruditos, mas pela capacidade que o autor tem de resgatar - com sensibilidade e poesia - os fragmentos do cotidiano. Reconhecer o divã de D. Fátima significa captar o micromundo que se vive num salão de beleza; descobrir os mais diversos sentimentos que povoam a alma de uma mulher; vislumbrar a projeção curta do que realmente são... Numa “visita” despretensiosa, você consegue, com sutileza, mostrar que a função de uma cabeleireira está além das tesouras... Excelente constatação!
ResponderExcluirÉ justamente esse olhar desprendido de amarras de gênero que faz de você um cronista sensível... Bjs in... ... ...
Reina.
Leitura deliciosa. Fui do riso a emoção.
ResponderExcluirO trecho "O serviço é rápido e agressivo. Cortam o cabelo como se rapa coco. Sai-se das barbearias com as orelhas vermelhas e um pouco de labirintite" me fez rir alto.
...Ao ler seus textos as vezes fico zangada com sua solidariedade à condição feminina. Ela me deixa a impressão de que carecemos de algum tipo de piedade por nossa condição física/emocional/metabólica ser distinta da dos homens. Mais de uma vez me peguei brava com isto, mas sempre lhe dou o benefício da dúvida.
Hoje você se redimiu completamente com o trecho:
"Só ela é capaz de suportar as fraquezas do outro e ainda achar tempo para morrer de amor."
Parabéns Jota.
A qualidade dos seus textos são inquestionáveis.
Já te escrevi mil vezes que estarei na sua noite de autógrafos!
Queria achar um pecado q te condenasse, juro. Mas tu é matreiro. Cada vez q chaga a beira do precipício se ergue soberbo.
ResponderExcluirUrubu mor, está sempre por cima da carne seca...rs
Excelente narrativa perpassa entre o crítico, o lírico, o humor, o filosófico e o jornalístico. Cronista caceteiro!
Abraço grande
Prima ASS
As Aspirinas e os Urubus continuam com tudo! Belo texto! Parabéns!
ResponderExcluirEsse moço da Lagoa do Feijão é mesmo arretado!!!
ResponderExcluirQuerido, é sempre muito bom ler você. Sabe por quê? Porque consigo sentir a sua sensibilidade poética até mesmo ao dizer: "Cortam o cabelo como se rapa coco. Sai-se das barbearias com as orelhas vermelhas e um pouco de labirintite".
Demorei a vir lhe "ver". Mas valeu a pena. Adorei a crônica. Parabéns!