Café com biscoito

Mona Lisa - Leonardo Da Vinci

Madalena era o seu nome quando se sentou ao meu lado. Era bonita e tinha uma olhar devastador, daqueles que arrancam a alma. Tinha longas unhas vermelhas de um vermelho forte e um batom na mesma tonalidade. Tinha lábios carnudos e mãos cumpridas e femininamente lindas. Alta de cabelos infinitos não era uma manequim, talvez pela idade, embora fosse tão interessante enquanto. Tinha um sorriso demorado e uma voz angelical quando me cumprimentou perguntando se poderia sentar-se.
Nem esperou a resposta. Sentou-se e foi falando sobre o dia e o preço dos alimentos da feira. Pediu um café bem doce e um pedaço de broa que a comeu molhando na xícara. Fazia barulho para sorver o pedaço molhado, esfriando-o na mesma proporção que o conduzia à boca. Ainda assim, não perdia a elegância de quem sabe viver o melhor da vida que vamos perdendo.
        Não falamos muito, é certo. Ela não gostava de falar sério nem de formalidades. E, embora esse encontro tenha demorado somente alguns minutos, recebi várias repreensões, dizendo ela que eu tinha um comportamento tradicional e antiquado. Mais que irritado, deixou-me constrangido e sem resposta. Ainda assim, o efeito de sua presença fazia-me flutuar por sensações ambíguas e descontroladas e eu sei que ela tinha ciência disso, até penso que se insinuava só para ver a minha reação.
        Não tenha medo de viver, dizia ela sorrindo demoradamente.
        Pensei em questioná-la sobre o que sabia da vida. Perguntei coisas, mas não tive respostas e, inevitavelmente, falei de mim, como todo infeliz.
        Por que está triste? Perguntou-me com deveras atenção.
        Falei-lhe, como todos nós fazemos, da vida e da falta dela. De como era difícil ser feliz onde não há felicidade e como se é triste sendo pai sem poder dividir o dia-a-dia com os filhos. Ela sorriu novamente e disse que achava linda a minha dor, mas achava também que eu era tolo e que deveria esquecer-me disso. Não vale a pena sofrer por uma coisa que está ao alcance, perto, vivo, possível, disponível; não vale a pena perder um sorriso por nada, acrescentou. Depois, pegou em minha mão e olhou-me nos olhos como se fosse entrar em mim e, como quem vai contar um segredo, pediu-me para que comprasse um biscoito de coco. Comprei e ela o comeu, lambuzando-se toda, misturando com café. Em seguida, me olhou novamente nos olhos e agradeceu serenamente. Eu sorri de volta.
        Ao tocar-me, senti-me invadido por um sentimento estranho e impessoal. Tinha o carinho de minha mulher quando chego em casa cansado do trabalho, mas a voz era de minha mãe dizendo-me calmamente por onde seguir, caso estivesse em dúvida.
        Eu também tenho filhos que não moram comigo, mas sou feliz de sabê-los onde estão, disse ela levantando-se. Apanhou as sacolas de compras que trazia, agradeceu o café, os biscoitos, a companhia e cobrou-me um sorriso, ainda que fosse forçado. Aí deu uma gargalhada.
        Levantei-me com pressa e toquei o seu ombro antes que ela sumisse na multidão. Vi que ela não gostou, talvez da intromissão ou mesmo do excesso de zelo.
        Por favor, diga-me quem é você? Perguntei querendo saber além do que já sabia.
        Como se fosse pedir outro biscoito de coco, aproximou-se do meu ouvido e respondeu-me baixinho e delicadamente. Eu sou Deus, mas não deixe ninguém saber que sou uma mulher.
        Piscou o olho desmanchando-se numa gargalhada inatingível, comum aos bobos.



Cronista



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Café com biscoito de José de Paiva Rebouças é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.comPermissions beyond the scope of this license may be available at www.blogdojottapaiva.blogspot.com.

Comentários

  1. Jotta,
    Sinto- me agraciada com teu texto.Por séculos estivemos associadas a imagens desviadoras, diabólicas, demoníacas. Desde Eva...rs. Agora nos reconstrói como Deus.Perfeito. Mas, acrescento, acredito q essa divindade esteja tb no homem, só q alguns a escondem tão bem, q chegam a crer q não a possuem, mas ela está lá, latente, pulsante. Como percebo isto? A arte, Jotta, a arte...rs

    Um abraco gigantesco

    Prima ASS

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  2. Lindo, lindo, lindo! Você me deixou sem palavras meu caro. Só posso repetir o velho clichê de quem simplesmente adorou o que leu. Muito bom! Obrigada pelo texto de hoje.

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  3. Ah! Eu bem que desconfiei!

    Texto gostoso de ser lido, como todos os seus!

    Alegrou minha segunda-feira.

    Beijos rei!

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  4. Quando eu o li a primeira vez, vc sabe bem do quando me emocionei... foi simplesmente surpreendente a personificação de DEUS. Além disso, faz-nos perceber que esse ser superior pode andar ao nosso lado da maneira mais simples e humana de ser. Ler este texto significou pra mim repousar e descansar nos braços maternos do Pai...
    Seu texto foi um verdadeiro presente, perfeito e impecavelmente bem construído...
    amo-te! Reina.

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  5. Oi, Querido Jotta.
    Que delícia começar a semana com um texto delicioso desse. Adorei "ver" Deus nesta agradável forma feminina. Obrigada pelo belo presente. Lindo!
    Bjos.

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  6. Jotta

    Eu tive de voltar aqui.
    Nem relí o texto, mas precisei voltar e comentar de novo.

    Acordei as 3h25 minutos da madrugada.

    E lembrei que precisava comentar aqui.

    Seu texto Jota, não foi só gostoso de ser lido.

    Seu texto foi uma faca afiada no peito de uma sociedade patriarcal cujo Deus é um homem e está sentado em um trono lá no céu.

    Seu texto, como tudo que você escreve,é audacioso, quando cutuca fundo naquilo que as pessoas não querem verem ruir.

    Jota, conheço, ou penso que conheço, seu ceticismo, porém tenho uma noticia pra te dar:
    Se Deus não existe, a natureza existe.
    E Ela é mulher.
    Isto ninguém pode negar.

    Parabéns pela construção literária que desconstrói o que`"É" para nos levar ao que "pode ser".

    Sua amiga,
    Sua irmã Literaria.
    Aspirina Klas”“

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