Linha Amarela

As flechas da vida- Giacomo Balla- 1928
Professora

Desenhos animados sempre me atraíram, tanto que minha primeira paixão foi por um personagem: Speed Race. Sofria quando ele entrava em apuros. Tratava-se de um desenho de aventura. Eu vivia, portanto, em sobressalto. Sorte do herói, que sempre se safava. Enquanto eu...

Outro desenho que me encabulava, tamanha a inventividade, era os Jetsons. Ali não me interessava o enredo, os conflitos eram muito parecidos com o dos Flintstones (que por sinal eu gostava bem mais), mas sim a relação dos personagens com o espaço futurístico e a tecnologia ultra-avançada. O tele-transporte, os empregados robôs, os botões multifuncionais, que tornavam ações como: comer, banhar, vestir, pentear, comer e escovas os dentes algo muito simples e prático. Vale lembrar que para uma criança essas ações não são nada práticas, nada simples. Representavam a salvação de muitos pequenos. Outra coisa surpreendente eram as esteiras que conduziam os Jetsons até as compras, até o trabalho, até a escola e até os vizinhos. Muito louco! Nem caminhar eles precisavam.

Quando tive que crescer e fatidicamente ingressar no mundo do trabalho, dei conta do lado ruim de morar na periferia de uma megalópole de um país em “desenvolvimento”. Ônibus demorado, lotado e sempre, sempre lerdando em longos congestionamentos. Queria mais era aquela navezinha compacta, que se transformava numa malinha de mão, e ah, uma esteira veloz... bem veloz para eu não levar pito do patrão.

Dia desses foi inaugurada a linha amarela do metrô, aquela lá que durou quase a era pré-cambriana para ser concluída, devido aos escândalos típicos das grandes obras neste país e o triste episódio do buracão de Pinheiros. Trágicos meios com que se conduzem a um fim... O fato era que ao avistar a estação Butantã, associei-a diretamente ao desenho dos Jetsons. Design pra lá de futurista, escadas rolantes pra todos os lados, portas inteligentes para a contenção dos passageiros atrás da linha de segurança (má notícia para os pretensos suicidas, que devem procurar outras linhas para tal façanha) e o mais emocionante: a viagem sub-fluvial pelo rio Pinheiros (qualquer semelhança com a Europa é mera coincidência). 

Havia um emaranhado de linhas para se cruzar até chegar ao meu destino. Dirigi-me até a baldeação da linha verde e, pela primeira vez, pus os pés na esteira dos Jetsons, que agora era a mais pura realidade. Nunca havia “andado” numa esteira em linha reta. A sensação foi de prece alcançada. Via na feição dos transeuntes o ar de contentamento. Não sei se eles se sentiam num desenho animado como eu, ou se sentiam aliviados por, depois de anos de sufoco, terem, enfim, um breve respiro.

Dali a pouco comecei a me incomodar. A esteira parecia não ter fim, as pessoas não caminhavam. Era um túnel sem perspectiva de final. Seria a grande via para o abatedouro d’almas? Senti vontade de sair correndo, mas havia uma multidão enfileirada bem ali na minha frente, que parecia não se importar com nada. Saboreavam placidamente a novidade. O jeito era esperar a esteira me levar, bem paradinha para não interromper a paz alheia.

Fui divagar. Filme Xica da Silva. A música de Benjor insistia em criar uma trilha sonora para minha lembrança... Agora a escrava-senhora, dentro de uma liteira, carregada por mucamos parrudos, desfila languidamente pelo arraial do Tijuco. Isto, de alguma forma, me reconfortou. Era também uma escrava-alforriada, podia, mesmo que por alguns minutos, ser servida, ser senhora.  Até chegar a linha verde todos podiam se regozijar com o seu próprio desfile. Somos precisados disto, talvez mais do que tecnologia. Somos carentes de existir.



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Comentários

  1. Acompanhei parte desses desenhos na minha infância tb. Mas não sei pq sempre gostei mais do Tom e Jerry, haha. Qual a criança que não imaginava o século 21 cheio de naves espaciais e roupas metálicas? Mal a gente sabia que tudo ia estar praticamente igual, ou até mais violento um pouco. Excelente texto!

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  2. Hahahaha.
    Estou "me" acabando de rir.
    Estou ouvindo a musiquinha, hahaha.
    Preciso ir conhecer a nova estação.
    No outro extremo da periferia de São Paulo não tem destas coisa não. Hahahaha. Mas temos o trem espanhol, que é ótimo, porém não adequado para suportar a demanda, que cada dia se torna maior.

    Eu devo ser pré-histórica pois gostava mesmo dos desenhos fábulosos como Caverna do Dragão. Sempre achei os desenhos futuristas muito feios.
    E, pasmém, o ano 2000 tão falado em minha geração chegou sem carros voando.(eles mal conseguem andar...).
    Parabéns pelo texto que nos fez passear pelo antes e trombar com um agora pra lá de atual.
    Adorei!

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  3. Olha, gostei demais da forma futurista realista com que tratou seu texto. Simplesmente magnífica a construção das ideias. Oh, menina brilhante!

    kkk, como a Klas, eu tb adorava a Caverna do Dragão, mas eu ficava fascinada com a família Jetsons! Confesso me aterroriza esse futurismo...

    Nós aqui de Mossoró não desfrutamos desse tipo de transporte, mas se precisar de um moto táxi, sempre tem uns 10 em cada esquina, rsrsrs.

    bj grande minha prima! reina.

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  4. Bom, parece q a maioria, assim como eu, preferia a Caverna do Dragão. Até hoje lembro de cada uma das aventuras. Mas claro tb assistia e viajava legal no futurismo dos Jetsons, por isso foi fácil fazer essa literária viagem que a nossa Lete nos proporcionou. Belo texto. Prima Ass, vc é ótima! Bjos aspirínicos.

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  5. gente, eu tb tinha verdadeira fascinação pela história. Lembro como se fosse hj o episódio em q eles já com o pé do outro lado revolvem voltar com dó da Uni.Havia um ensinamento ético/moral q nos desenhos atauis está mto mais diluído. Tragica morte do heroi.
    Agora nem por isso deixei de gostar de desenho, atualmente meu predileto é "As terriveis aventuras de Billy e Mandy" e "Kid X Kat", Davi, não sei se vc já assistiu, mas tem quase a mesma estrutura do Tom e Jerry, só q com mto mais densidade psicológica. Tom e Jerry me dava um troço. Pois tenho pesadelos recorrentes de perseguição q lembram a perseguição do desenho...vai entender...rs
    bj amados!
    prima ASS

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  6. Você me fez lembrar Braulio Tavares (www.mundofantasmo.blogspot.com) um paraibano fantástico que é referência em Ficção Científica na América Latina. Deu até saudade de ler seu blog, que há muito não vou lá. Ele incita os escritores contemporâneos a escreverem a partir daquilo que está se vivendo, com a linguagem que está se falando e com os fenômenos que pulam aos olhos, e não tentar construir textos na medida de um José Alencar. Quando isso é feito, esquece-se que, àquele tempo, ele também escrevia o seu mundo como ele era e que só hoje tornou-se erudito.

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