Por que escrevo?

Senhora escrevendo uma carta com uma criada. Vermeer, 1670.


Esses dias me perguntaram por que escrevo. A pergunta a princípio era idiota. Todos sabemos as incontáveis razões pelas quais escrevemos, afinal a escrita sempre foi uma habilidade vital para o ser humano. Mas antes de sair xingando o pobre coitado que me lançou essa inocente(?) pergunta, refleti um pouco e percebi quão inteligente era aquela indagação. Tão inteligente que eu mesma jamais havia me feito. Por que eu escrevo? O que me leva a dedicar horas de meus dias redigindo laudas e mais laudas de palavras muitas vezes desconexas e sem qualquer utilidade para a humanidade? Sem ter o que dizer, restringi-me a um breve “sei lá” regado a um tímido e amarelo sorriso. E saí de fininho com aquela pergunta martelando em minha cabeça, de modo que não resisti e mergulhei na questão, buscando as razões para, desde sempre, me sentir atraída pela prática da escrita.

De uma coisa tenho certeza: não escrevo para ganhar a vida, uma vez que até hoje não recebi um centavo sequer pelos meus textos, sejam eles jornalísticos, científicos, didáticos ou literários. Isso talvez se deva ao fato de não passarem de reles textículos, cuja serventia seja mesmo nenhuma.

E a pergunta novamente ecoou: por que escrevo?

Recorri a George Orwell, em um de seus ensaios, lido alguns anos atrás, cujo titulo é coincidentemente “Por que escrevo”. Minha expectativa era que essa releitura me levasse a encontrar respostas para aquela pergunta que teimava em sobrevoar meus pensamentos. Orwell me acenou com quatro possíveis razões para se escrever: entusiasmo estético, impulso histórico, propósito político ou puro egoísmo.

Assegurada por um dos mais importantes ensaístas do século XX, poderia eu, agora, encher o peito e dizer que escrevo por algum desses motivos. E pronto. Estaria encerrada a questão. Mas seria limitar demais os motores que impulsionam este meu crônico vício. Por isso ousar-me-ia dizer que há em mim todas essas razões. Que pretensão a minha! Eu sei. Mas eu me explico.

Primeiro, vejo-me delirando esteticamente ao fazer uso hiperbólico das figuras de linguagem, das ambiguidades, dos trocadilhos (muitas vezes toscos), que nossa língua em sua tão bela e viva diversidade nos permite. Escrevendo também busco, de alguma forma, deixar para as futuras nações um pouco da história da minha geração. Com meus textos desejo ainda, por que não dizer, mudar o mundo. Afinal, cada vez que graficamente solto um grito de dor, de revolta ou de esperança, anseio ali, à minha maneira, uma sociedade melhor. Mesmo sendo isso contraditório, não posso negar que escrevo também porque, assim como a maioria dos seres humanos, sou egoísta. Sim, confesso, sou egoísta! Escrevo porque quero ser vista. Porque quero ser lembrada. Porque quero, através das minhas palavras, me tornar um pouco imortal.

Mas de nada adiantam essas explicações. Mesmo com tantos e tão pujantes argumentos, a pergunta insiste, persiste e nem pensa em calar. Há de ter ainda uma razão maior para me dedicar gratuitamente e com tamanho zelo ao penoso trabalho de escrever. Só me resta procurar a resposta no único lugar ainda inexplorado: minhas lembranças. E, sob a lente do passado, eis que encontro a minha escrita ali quietinha, calada e bem escondida, numa esquina entre a infância e a juventude, trajando um longo e amarelado vestido, com leves estampas azuis feitas com caneta Bic.

Recordei-me, pois, que foi durante a adolescência que me apaixonei por ela, através de meus “queridos diários”. Foram tantos produzidos ao longo de anos que não consigo agora contabilizá-los. Mas sei bem que todos eram abundantemente recheados de descobertas, segredos e emoções. A adolescência se foi. Tornei-me adulta. Vieram a faculdade, o trabalho e com eles as responsabilidades. Os diários foram deixados de lado. A escrita, não. Velhos cadernos, folhas soltas, qualquer pedaço de papel eram sedutores convites para me debruçar sobre as letras e desenhar com palavras meus sonhos, dores, medos e paixões. Com a chegada da internet, as folhas de papel foram substituídas pelas telas do computador. Criei meu blog e com ele passei a viver a fase digital de minha história de amor com a escrita. Se para muitos esta seria uma etapa inerte, virtual e incorpórea, para mim foi a mais ativa, real e estimulante. Agora meus textos finalmente saiam das gavetas e saltavam das amareladas páginas para os curiosos e críticos olhos do leitor. Agora eles, finalmente, tornaram-se livres para cumprirem o seu verdadeiro papel: serem lidos.

Assim, percebo que, na verdade, o que sempre busquei, através deles, foi libertar minhas angústias, minhas mágoas, meus receios, minhas aspirações. Mas escravizada pela timidez, durante anos, acorrentei-os a velhas páginas, sem deixá-los viverem a plenitude de serem lidos, relidos, interpretados, criticados, amados e odiados.

Hoje, percebo que, ao escrever, realizo uma viagem para dentro de mim mesma e me liberto de tudo que incomoda, machuca e faz mal. Ao escrever, dou-me a possibilidade de conhecer melhor a mim e ao outro. Ao ser lida, aprendo, cresço, amadureço. Ao ser lida, meus textos se tornam reais, eu me torno real.

Agora, eu sei por que escrevo. Eu escrevo para ser lida. Porque de nada adianta escrever, se não for para tocar o coração das pessoas.


Rokátia Kleania

Professora

Licença Creative Commons
Por que escrevo? de Rokátia Kleania é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com.br.

Comentários

  1. Em julho de 2010 escreví no blog ...eu todos os dias, um texto onde eu tentava entender o que diabos é esta coisa que me come por dentro quando não escrevo.
    O Grito da coisa, foi o titulo do texto.

    Você navegou pronfunda e sabiamente em nossos motivos.

    Eu escrevo para não adoecer.

    http://eutodososdias.blogspot.com/2010/07/eu-todos-os-dias-o-grito-da-coisa.html

    Rokátia, se tiver um tempo dê uma lida lá.
    O texto é grande, mas é um grito.
    É a vã tentativa de responder a pergunta que mais dia menos dia bate na porta de quem escreve....
    além disto vou mandar por e-mail um cronica do Rubem Braga que também nos acena com uma das ínumeras respostar.
    Beijos.


    Beijos grandes!

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  2. Que bom que você encontrou a resposta. Parece que escrever é um dos aspectos que define a sua existência, que a faz se sentir completa. Mas, pensar sobre o assunto só fez você encontrar palavras que descreveram a resposta que você sempre soube. Continue escrevendo com a mesma paixão que você põe nos seus textos sem se preocupar em responder certas perguntas (impertinentes).

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  3. Quando terminei de ler seu texto, disse um palavrão daqueles: P Q P que magnífico! Esse, definitivamente, seria o texto que eu gostaria de ter escrito. Seu texto traz emoção, leveza, literariedade, ânimo pra gente querer escrever.
    Adorei o gancho que faz com George Orwell, fiquei louca para ler este texto dele. Também me fez reportar a minha adolescência. Comecei com diários. Na verdade, nos cadernos durantes as aulas. Daí minha amiga, Joelma, me presenteou com um diário colorido com chaves (pense!). Igualmente, esta semana me ocorreram detalhes vividos na infância... texto para próxima semana, rsrsrs.
    Estou em êxtase com o seu texto querida, brilhante! (ainda bem que somos amigas, assim vou poder exibir vc bem muito!)

    reina

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  4. Rokátia,
    Primeiro a parabenizo belo belo e fluente texto. Foi mto prazeiroso lê-lo.Creio q partilhamos das mesmas indagações sobre o ato de escrever. Escrevi um poeminha sobre. Acho q ele dialoga perfeitamente com a sua crônica.(Depois te envio).
    Ultimamente, ando pensando q escrevo pq Deus ou o diabo anda soprando coisas nos meus ouvidos...rs...A escrita manda mais em mim do q eu mesma...É quase um lance psicográfico...Credo...kkk...
    Um grande abraço

    Prima ASS

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  5. Todos nós temos razões para fazermos coisas e escrever é uma delas. Orwel resume bem algumas razões, mas como você diz, podemos fazer por todas elas... Eu sou mais político, mas também sou um pouco pavão e concordo, brutalmente, com o final do seu texto. Excelente ensaio. Lindo.

    José de Paiva

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  6. Querida Rokátia, lendo seu último texto, pude quase chorar. A forma como descreve a paixão por escrever me leva a imaginar um lindo caso de amor, cheio de altos e baixos,e que como nas uniões convencionais nem sempre nos dão retorno. Enfim, quase pude chorar, porque suas palavras tão belas e sedutoras me levam a outra angústia: Porque não escrevo? Como posso não desfrutar desse misto de seriedade e brincadeira, que como bem explicou nos faz aprender, crescer, amadurecer? Como posso calar-me se tenho a oportunidade elegante de gritar todos os meus anseios, propagar o bem, criticar o mal e ainda sonhar em através de textos desfrutar de um leve sabor imortal, tornar-me imortal?
    Escreverei então, explicando ou tentando relesmente explicar o porquê não escrevo.
    Abraços Grandes
    ARIANE BARRETO ( Ministrante do Minicurso de História Oral e Cultura popular, que você participou na UERN-Pau dos Ferros, lembra?)

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  7. Olá, queridos amigos.
    Agradeço todos os ilustres adjetivos atribuídos ao meu texto. Fico feliz que tenham gostado. Está sendo deveras gratificante dividir minhas produções com vocês. Sinto-me realizada, pois esse feedback me alimenta de vontade de escrever sempre mais e mais... Aqui estou a me descobrir, não uma cronista. Estou longe disso ainda. Mas estou a me descobrir mais lírica, mais romântica mais sensível, enfim, mais humana. E devo muito disso a todos A&U e, claro, aos nossos sempre bem vindos visitantes. Creio que o feitiço virou contra o feiticeiro, pois ao invés de tocar os seus, vocês é quem estão a tocar meu coração.

    Quanto à Ariane, claro que lembro de você e daquele maravilhoso minicurso. Bom recebê-la aqui no nosso aspirínico cantinho. Volte! Volte sempre!

    Abraços.

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  8. ROKATIA, seu texto é notável. Vai de encontro ao que dizem proeminentes personalidades da escrita. Mário de Andrade dizia que escrevia sem pensar, mas pensava depois de escrever, tanto para corrigir, como para justificar o que escrevera. Já o crítico francês, Sant-Beuve (1804-1869), disse: "É preciso escrever o mais possível como se fala e não falar demais como se escreve". Era adepto da "boca fechada não entra mosca", mas incentivava que se escrevesse sempre, para falar somente o essencial. Barack Spinoza, filósofo francês, que desmistificou as superstições (inventadas pela religião) que nos causam medo e, aí, pedimos socorro a ela, a religião, afirmou em sua biografia que escreveu o seu primeiro parágrafo depois de ler 3 mil livros. Maneira que eu alio bastante leitura com escrita, isto é, se eu quero escrever mais ou menos tenho que ler bastante. Você assegura que escreve para ser lida. Singular prazer, pois, sabendo que seus textos estão sendo lidos, sinal que agrada, tem sentido o que diz e, quando falar, o que escreveu lhe ensina a falar menos, dizendo tudo. Enquanto isso outros vão escrevendo também, pois leram o que você escreveu, ao mesmo tempo em que irão falar menos, corrigindo a escrita bem pensada, na hora de justificar o porquê dos textos escritos. O meu comentário é de aplauso pelo pensamento refreado nesse texto elegante, claro, fluente. Avalio que você guarda, nos seus alfarrábios, verdadeiros tesouros, tanto no sistema mnemônico, como no ideográfico, para o deleite de todos os seus leitores. Por favor, nos dê esse prazer...

    Ass. William Lopes Guerra

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