Quando me deito

Moa - Egon Schiele

Cronista       

Quando cheguei aqui, nem tinha 17 anos e pouco sabia da função. Devo a dona Milonga os cuidados e o trato para que desenvolvesse bem meus dotes, dados a mim por herança, dizem, de uns tais antepassados. Talvez, pelo fato de eu ser morena e todo mundo dizer que sou negra, chamo mais atenção e tenho a preferência. Acho isso uma grande bobagem porque, em todos os ambientes que visitei, a maioria é da minha cor, com a mesma origem que eu e, mesmo assim, não cheiram os meus pés, mesmo eu tendo mais idade.
            Por tempos, eu me escondi de mim, mas hoje, reflito e asseguro que a minha profissão é o que sou. Digo isso para me justificar, porque eu poderia ter sido muitas coisas, mas por ser despudorada fiquei aqui, atendendo aos desejos dos outros por um preço cada vez menor. Minha mãe, enquanto foi viva, disse que eu nasci com a safadeza nos olhos e, por muitos anos, sofri para esconder o meu corpo e não confrontá-la. Meu pai dizia que eu era linda e me olhava de um jeito diferente. Mamãe me batia, acho que por isso. Sempre foi fraca da cabeça, talvez de tanto passar fome. Ele também me batia quando chegava bêbado e eu não gostava de seu carinho nem de sentar em seu colo. Foi ficando mais violento até que morreu esfaqueado pelo meu tio no bar da esquina. Não vi minha mãe chorar, mas sei que ela sofreu, tanto que precisou juntar-se logo com outro homem, mais novo e mais calado.
            Viver sem o amor de uma mãe é como não viver. Reina-se nos recantos até ouvi-la expulsando você de casa. Mas ela tinha razão. Eu nunca mereci sua confiança, nem com papai nem com o padrasto calado que me levou para a cama. Entrou sem ser convidado e quando acordei, estava vermelha e com a boca atada. De amanhã, apanhei feio com o cabo do ferro de passar. Perdi a confiança de minha mãe que me alimentava e me dava teto.
            Suportou-me por algum tempo, mas não agüentou a preferência do marido. Eu quis dizer que não tinha culpa e que não adiantava trancar a porta, mas ela só gritava e me jogava coisas. Devo muito a uma colega de escola o abrigo que me deu nos primeiros dias tirando-me da rua, porém tive de fugir de sua casa para não desmerecer a ela nem a seus pais, se soubessem que seu irmão também me tentava. Mas ele não tinha culpa. Eu é que não soube me dar o respeito. Onde eu passei foi assim, até que decidi entregar-me à luxúria que é o meu lugar, não por querer, mas por vocação – desígnio, como diz dona Milonga.
Faz anos que isso aconteceu e por todo esse tempo me senti podre. Nunca tive a intenção de fazer mal a ninguém, mas feri aos que mais amava. Sei que nasci com uma maldição que não sei bem qual é. Sei apenas que nunca devo ter sido coisa boa. Mas estou envelhecendo. Entrei na década que vai dar nos 40 e meu corpo não me obedece mais como queria. A cada dia, está chegando gente nova, até mais nova de quando eu cheguei e até com mais rebeldia. Mas elas são diferentes. Elas não são como eu que podia ter seguido outro rumo, embora não saiba bem qual. Mas eu estudei, fiz quase todo o primário e sei ler e escrever. Sempre fui sabida e corajosa. Elas não. São apenas meninas.

Licença Creative Commons

Comentários

  1. Que delícia sermos tantos outros, com suas dores e seus prazeres...Personagem denso. Jotta, acredito q tenhas se deliciado escrevendo-o. Pq assim é q me sinto...

    Grande abraço

    lete
    Prima ASS

    ResponderExcluir
  2. Nossa! Jotta, por várias vezes eu quis chorar lendo esse texto... Muito bonito e ao mesmo tempo triste por fazer referência a tantos e tantos casos semelhantes que observamos no dia a dia.

    ResponderExcluir
  3. Mais uma vez vc sai de si e empresta a sua voz- traduzida em letras- para se referir uma questão social. Texto maravilhoso e ao mesmo tempo sofrido. Empregar a 1ª pessoa, para este caso, deu vida a tantas meninas, adolescentes e mulheres que sofrem de abuso sexual neste país. Através dele, nos reportamos para um mundo que preferimos ignorar e transitamos no psicológico de um ser (vários) que pode caminhar ao nosso lado sem que as vejamos...
    Gracias por mais esta pérola de texto.
    Bjs meu amado!
    reina.

    ResponderExcluir
  4. Não posso mentir. Vi a face de um Jota que não conhecia. Texto absurdamente tocante e forte. Lerei várias vezes com certeza!

    ResponderExcluir
  5. Pelos Céus JOtta.
    Chorei compulsivamente enquanto lia seu texto!

    Você encarnou fielmente a pele desta mulher e traduziu a dor que já vi nos olhos de uma que viveu semelhante situação.

    É este o estigma.
    É este o peso.
    É esta a "culpa" que joga dezenas de mulheres em uma vida a margem.

    Bendita sejam todas as messalinas (ou dê o nome quiser)!
    Bendita sejam todas as prostitutas!

    Abaixo uma sociedade hipócrita que cria o marginal (leia-se: os que vivem a margem) para depois desprezá-lo!”
    Eliana Klas.

    ResponderExcluir
  6. O velho Jotta é realmente surpreendente...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

HOMEM DE PALHA [Ensaio sobre o palhaço]

Minha amada bruxa

O mimo que ele não trouxe