Amor meridional


Girl on the Couch - Alberto Sughi


Cronista

Meridiana se apaixonou pelo cara só porque ele se ofereceu para ajudá-la a carregar as compras. Não era sua intenção se apaixonar, mas quando as mãos precisam de enlace as intenções viram pretensão. Porém, se ela pretendeu a felicidade, descobriu que, além de abstrato, esse sentimento anda mucumunado com o desengano e logo se acompanha ao prefixo in. Assim como se apaixonou, desapaixonou no primeiro desacordo, dando origens a outras palavras carregadas de prefixos de negação e a outras ocasiões em que, se negar ou negar o outro, é o único remédio para as fugas de si mesmo.
Meridiana se apaixonou de novo só porque o cara tocou a ponta de seus cabelos e lhe ofereceu um sorriso descarregado de receio. Ainda que fosse artimanha da sedução masculinha era um presente. Mimese. Mas dessa vez, Meridiana pensou direito e, mesmo sabendo que como toda fêmea conquistada não podia fugir à exibição, apaixonou-se e desapaixonou-se ao mesmo tempo, só para não sofrer antecipadamente. Não foi exato como na primeira vez, mas o fez assim para se proteger. O fato é que ela não queria incorrer na incerteza e incidir em outros ins.
Meridiana sofre de uma síndrome que tem acometido toda a uma geração nascida e crescida de ouvir dizer que casamento é uma instituição falida. Se é instituição e se fadada está, melhor viver-se como se nasce: sozinha e na sombra da mãe. Trocar as diversões pelos compromissos - profissionalizar-se e dizer muitos nãos até que os caras da escola, da faculdade e do trabalho se casem e virem homens apaixonados e não tenham mais tempo para ser os ouvidos que a ouviam sonhar com os homens perfeitos. Meridiana é bem assim: deixa passar.
Mas todo mundo vê que Meridiana queria mesmo era esquecer-se de tudo isso e até esconder um pouco de sua arrogância feminista e partir o coração com a pedra do outro, mesmo se sangrar. Meridiana queria ameliar seus domingos e esperar os carinhos que chegam de madrugada quando, inesperadamente, os corpos se ajustam durante o sono. Mas ela tem medo, porque o medo é um sentimento que provoca um estado de alerta e, estando alerta, Meridiana está segura.
Ela sabe que logo, logo terá de escolher, mas se dá ao luxo de esperar um pedacinho mais, embora chegue um tempo, dizem, que a mulher não pode mais esperar. Mas ela espera mesmo assim, porque o que ela quer é tão pouco que até faz medo dizer de tão pouco que é. O cara nem precisa ser bom, nem precisa ser galante, nem ter dinheiro nem nada. Nem precisa ser intelectual, porque gente que nem Meridiana é quase sempre intelectual. Meridiana só quer ser surpreendida, assim, quando menos se espera, nos lugares ou momentos até inadequados; ela quer ser surpreendida com aquele mesmo olhar que tocou a ponta de seus cabelos.

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Amor meridional de José de Paiva Rebouças é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com. Permissions beyond the scope of this license may be available at www.blogdojottapaiva.blogspot.com.

Comentários

  1. No fundo, todos querem ser resgatados. Homens, mulheres, todos precisam de um afago, mesmo que seja mentiroso ou pago. Meridiana representa a geração das mulheres focada na carreira, mas ainda mais que isso, representa todos nós que almejamos um amor tranquilo, mesmo que isso esteja em segundo plano.

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  2. Olha Paiva, tenho muito a falar deste texto.

    Primeiro, dizer o quanto admiro o poder que você tem de capitar as mais diversas peculiaridades do seu entorno e transformá-las em literatura. Conversas, fatos, música. Tudo se torna objeto para o seu deleite com a escrita. Quando vc toca, tudo vira ouro. Isso é o que faz de você grande. Nada escapa ao seu olhar. Qualquer fala que seja, já se faz mote para o seu próximo texto. Sua percepção é aguçada e precisa. Ingredientes indispensáveis para o manejo com produção literária. Sua arte me absorve, me suga, me anestesia.

    Sobre o texto em si, acho que: de Meridiana e louca, todas temos um pouco... “mas o fez assim para se proteger.” Retrato da covardia humana! Como se não bastasse só dizer com as mais simples palavras, você abusa da ironia e completa: “Mas ela tem medo, porque o medo é um sentimento que provoca um estado de alerta e, estando alerta, Meridiana está segura”. Sabor a fel! Mas, pergunto a mim e a todos que leram o texto: onde é que estamos seguros no mundo? Mergulhados no medo? Essa sua doce ironia merece reflexão...

    Com esse texto, você bate, depois passa a mão com pena:
    “Meridiana é bem assim: deixa passar.”; “Assim como se apaixonou, desapaixonou no primeiro desacordo”; “mesmo sabendo que como toda fêmea conquistada não podia fugir à exibição, apaixonou-se e desapaixonou-se ao mesmo tempo, só para não sofrer antecipadamente.” ...............................................
    “o que ela quer é tão pouco que até faz medo dizer de tão pouco que é.”. Será mesmo que se quer pouco? Acho que se exige muito do outro, por isso a frustração. Quando se espera muito, se está fadado ao desencanto e à solidão. As pessoas são o que são, dão o que têm. Claro que, de vez em quando, podemos deixar nas entrelinhas nossos desejos ocultos para o outro se sensibilizar, mas destruir para construir feito barro, é bem difícil. Talvez, pensando melhor, seja pouco mesmo o que Meridiana queira, mas o pouco dela, é muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito para o outro que não compreende a dimensão da sensibilidade feminina...

    Outrora, tive um pouco de Meridiana, mas antes que me protegesse muito, meu coração disse: Vai! Eu fui! Ponta pé no traseiro do medo e às cucuias essa de se proteger. Fui, vi e venci! Rsrs.
    "Vai, Meridiana, ser gauche na vida" (Drummond)

    Reina.

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  3. Vi. Li. e Gosti...rs...mto! Sou sua fã. Admirável o seu poder de construção literária através dos pequenos alumbramentos q a vida lhe dá. Sabemos q é possível de se ver mta coisa através desses alumbramentos, mas a vida, por mais ordinária e insípida q seja, continua sendo mto mais.
    talvez o nosso maior desejo seja capturá-la em todo seu esplendor e magnitude e complexidade. Quem sabe um dia...quem sabe...
    Tocada.... Maravilhada...

    bjs
    lete
    Prima ASS

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