Atração fatal


Nadav Kander, Erin O’Connor posing as Ophelia, 2004

Professora

O pôr-do-sol já se despedia de mim, quando ela mansamente surgiu ao longe. Ainda distante, aquela suntuosa aparição me despertou atenção. O já quase velho coração acelerou repentinamente dentro do peito, numa batida que lembrava o saudoso frevo do último carnaval passado em Olinda. Meu olhar que antes dançava por entre os transeuntes que na busca incessante por saúde e corpos perfeitos faziam suas corridas diárias às margens da lagoa, agora ficara estático diante daquela verdadeira prova da existência de Deus. Haveria amostra mais divinal do que aquele exemplar feminino de beleza? Decerto que não.
Aos poucos fui percebendo, que de forma cadenciada e discreta ela se aproximava. Seu caminhar elegante e suave denunciava que aquela era uma figura feminina singular. Seu vulto agora próximo já se fazia real diante de mim. Nossa! Ela era mais bela do que imaginara minha míope fantasia. É verdade que já havíamos nos cruzado outras vezes, em outros lugares, em outras situações. Naquele início de noite, porém, ao praticamente tocá-la com minha íris, pude enfim perceber o quanto era verdadeiro tudo que diziam seus incontáveis admiradores. Impossível não apreciar tamanha perfeição desenhada sobre aquela branca epiderme.
Ao me flagrar sob o controle de seus encantos, procurei me esquivar. Estrategicamente escorreguei os meus olhos em outra direção, para não ter mais em minhas retinas a doce fotografia da sua face que agora se desenhava em detalhes a minha frente. Contudo já se fazia tarde, o brilho do seu olhar já hipnotizara o meu ser e conduzia sem nenhum pudor o meu querer.
Sabendo-se objeto de desejo de tantos, ela propositalmente brincava com meus sentimentos sem nenhuma compaixão e, como todo ser enamorado, eu totalmente desprovida de receio me oferecia como alvo das suas tão eficazes armas de sedução. Embora aparentemente parecesse observar a todos, o seu achegar me permitiu imaginar que seu olhar distraído me contemplava de modo especial. Conhecedora do seu poder sedutor, ela sabiamente se aproveitou da fraqueza inerente aos apaixonados, que naquele instante em mim fluía, para acenar com um desavergonhado sorriso.
Com a alma inteiramente embriagada e o corpo em total estado tórpido, recusava-me a dizer adeus, embora o último badalar do sino da igreja me avisasse que já era hora de partir. Fiquei ali, pois, por mais alguns instantes, enquanto a via delicadamente deitar-se sobre as águas escuras daquele belo cartão-postal. Seu corpo imerso tentadoramente me convidava a também mergulhar. Dei alguns passos em direção às águas. Totalmente gélida a água em meus pés contrastava com o quente pulsar em meu peito. De repente, em uma orquestrada sinfonia, o coaxar dos sapos, o cri-cri dos grilos e o piscar dos vaga-lumes me acordaram daquele transe lunar e me avisaram que eu não sabia nadar. Olho, pois, mais uma vez para ela e com um saudoso sorriso despeço-me, enquanto ouço ao fundo a Clair de Lune, de Debussi.

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Comentários

  1. Realismo fantástico. Lembrou-me os enredos de Murilo Rubião. Gosto muitíssimo. Uma história bem contada e com o final surpreendente. Ficou em mim a dúvida: o narrador-personagem é feminino ou masculino? talvez a duvida faça parte das intenções de ambiguidade.
    um grande abraço
    lete
    Prima ASS

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  2. Narrativa suave e gostosa de se ler. Descrições precisas e pontuais.A personagem, a meu ver feminina ("eu totalmente desprovida"[em resposta a Arlete], vê-se rendida ao fascínio da lua. Em nenhum momento, esse substantivo foi mencionado, talvez, justamente pelo poder do conteúdo é que ela foi inteligentemente omitida. Texto metafórico e sinestésico.
    Abraços!
    Regiane.

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  3. “Ontem a lua me olhou com uma “cara” tão linda, que eu fiquei assim como no seu texto, flertando com ela, despudoradamente,
    Belo texto. Me deu vontade de escrever um assim.”

    Eliana Klas

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