Carência


Sofrônia - Lutero Proscholdt



Publicitário

Quando ele entrou na sala eu já estava sentado à mesa há muito tempo. Quis reclamar o atraso, mas, como eu ainda me mantinha são, era melhor ficar calado. Alto, barbudo e com um nariz torto, oriundo de uma das brigas de rua de seu tempo de mercenário, depositou sua mala surrada em cima da mesa e começou a contar o dinheiro. Diverti-me com um pensamento de um episódio de Pica-Pau, no qual ele dividia a comida com outro personagem, de modo que ele ficava com tudo no final. Ele jogou uma nota de vinte amassada que tirou do bolo desigual da sua mão. Logo depois mais outras duas notas de vinte. Uma nota de cem. “Ai está pelo serviço!” no final de tudo. Recolhi meu dinheiro sobre a toalha que um dia foi vermelho-sangue e saí pela porta dos fundos do bar, tudo conforme manda o figurino.
Eu era feliz. Eu era estupidamente feliz. E não admito que alguém me diga hoje, clichês do tipo “você tem que superar o passado”. Sinceramente, é melhor deixar o passado como meu melhor amigo.
        Mônica não era exatamente linda. Baixinha, longe da altura ideal que as mulheres fúteis e entupidas pela mídia almejam. Adorava amarrar o cabelo de lado, de uma forma bem incomum, tenho que admitir. Nunca tirava um par de tênis coloridinhos dos pés. Seu segredo bem mais escondido eram duas tatuagens que tinha logo acima da coxa: um morango e uma pimenta. “É meu lado doce, inocente e meu lado agressivo e picante. É coisa de mulher, você não entenderia”.
        Sim, Mônica, eu entenderia sim. Eu entendi desde o dia que te conheci na fila do parque de diversões. Você, novinha, 16 anos, cabelos vermelhos tingidos de forma porca pelo crepom roubado das lojas do centro (fato que descobri bem depois). Você e mais um grupo de garotas histéricas. E só você me fez parar no tempo e sentir os pingos de chuva. Não sei por que, mas quando algo me chama muita atenção saio do ar por uns minutos e sinto gotas. Nem sei de onde elas vêm.
        Com todos os pensamentos pedófilos possíveis, segui seus passos durante o parque inteiro. Acho que você deve ter se perguntado qual seria a razão de eu estar, coincidentemente, nos mesmos brinquedos que você? Um quarentão careca e barrigudo e sozinho em um parque de diversões colorido e barulhento.
        Tenho minhas manias, tá bom? Frequentar lugares públicos sozinho é uma delas.
        Mentira. Eu ia a tais lugares sozinho porque, por alguma razão, o velhinho aqui não era considerado uma boa companhia.
        Lembro-me de você bem suja de algodão doce vindo em minha direção, sem parecer ter a noção de verdade do que estava fazendo. Tenho certeza de que ainda há pedaços de unhas de tão forte que agarrei o banquinho e fingi que não vi você se aproximando. Senti-me um virgem diante da garota mais popular do colégio.
        Praticamente era, né? Algo em mim afastava as pessoas. O relacionamento mais longo que já tive foram algumas horas nos braços de algumas prostitutas que, pacientemente, escutavam meus relatos de homem velho solitário enquanto arrancavam cada moedinha que podiam do meu bolso. Sabe o que é bullying sexual? Era mais ou menos o que acontecia quando eu conseguia levar alguma mulher pra cama: a exclamação “que pinto pequeno!” seguida de uma risada alta e um “valeu, fica pra próxima”. Depois de quase ter matado a terceira que fez isso, desisti. Era melhor pagar.
        Mônica, Mônica. O que você viu em mim? Ao meu lado, naquele banco velho e mal pintado, começou a conversa mais empolgada do mundo falando de como quase vomitava naquele brinquedo que nos virava de cabeça pra baixo. Eu sorria e concordava maravilhado com sua inocência. O cabelo vermelho crepom molhado pelo suor e pedaços cor-de-rosa por toda a sua boca tornavam a cena ainda mais perfeita. Suas amigas a chamavam demais, mas você insistia em permanecer com aquela conversa. Dispensou todas as meninas e voltou pro meu lado.
        Depois de um tempo, olhou pro relógio e disse: “Nossa, tenho que ir!”. E correu. Não me deu a chance de me despedir. Não me deu a chance nem de me apresentar como futuro e único homem da sua vida. Pra minha surpresa, você voltou correndo com um papelzinho com seu número anotado: “Liga pra mim. Adoro sorvete de morango!”. E correu rumo ao portão de saída.
        Dentro do bolso da camisa, perto do coração, guardei aquele papelzinho. Mas nem precisava. Decorei aquele número em dois minutos. Parecia que já sabia aquele número desde sempre. E foi o número para o qual liguei muitas vezes nos três anos seguintes. Foi a razão da minha vida durante três anos. Dos seus 16 aos seus 19, mais precisamente. Conspiração divina?
Aquele dia era seu aniversário e você estava comemorando com suas coleguinhas, que também encheram você de perguntas sobre “aquele homem feio e careca” que você sabiamente respondeu como sendo “cliente da minha mãe”.
Por falar no seu pai, que foi um filho da puta ausente, por deixar você e sua bela mãe sozinhas tão cedo. Tenho que admitir que Cláudia foi a mulher mais bonita que já vi na vida. Um ano depois do nosso namoro começar, você fez questão de me apresentar em casa. Pra minha surpresa, sua mãe foi um anjo e ainda fez piadinhas com minha idade: “Que bom que minha filha escolheu um homem experiente pra ela! 42 anos são ótimos! Pelo menos você não tem 21 e vai deixá-la grávida aqui, né?” e fechou com uma risada bem gostosa.
        Suas amigas se afastaram. Você prestou vestibular naquele mesmo ano e passou para o curso de Direito. “Quero f*der com caras que nem meu pai e jogar todos na cadeia!”. Com uma determinação de leoa que eu nunca tinha visto em ninguém. Sua vida era seu curso e eu. Minha vida era só você. E claro, muitas tardes divertidas ajudando sua mãe com os bolos que garantiam o sustento da casa.
        Lembro-me de uma tarde em especial, que sua mãe me disse o seguinte: “Sei que você é amargurado por alguma razão que prefiro não descobrir. Sei também que você não gosta da sua aparência. Mas saiba que é um homem de ouro. Só permiti entregar minha filha a você porque sei que a faz feliz. Não há mais influências ruins em sua vida, não há mais bebida, não há mais amizades desnecessárias. Você foi a luz! E eu dou graças a Deus todos os dias.” Foi o dia mais feliz da minha vida (fora os que eu passava com você, claro).
        A gente era feliz e pronto. No seu aniversário de 19 anos, por coincidência, o mesmo parque de três anos atrás estava na cidade. E foi o mesmo parque que te tirou de mim. Brincamos em todos os brinquedos possíveis, de mãos dadas, com troca de beijos e ignorando os olhares de reprovação. No final da noite, na porta do parque, uma bala perdida. Simples assim. Atinge em cheio seu lindo e doce coração. Gritos, correria e eu amaldiçoando pra sempre quem tinha tirado minha razão de existir. Minha felicidade durou exatamente três anos. Três anos de puro algodão doce.
        Só pra constar. Os R$ 160,00 que recebi do brutamontes foi o pagamento por uma das festinhas infantis que organizei junto com sua mãe. Ela está grávida e espera outra filha que batizaremos de Mônica, em sua homenagem. 

Licença Creative Commons
Carência de Davi Moura é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com. Permissions beyond the scope of this license may be available at www.blogadorocomer.blogspot.com.
    

Comentários

  1. Uma das obras mais bem trabalhada do Davi. Muito cuidado na construção das imagens e das memórias que se misturam aos diálogos. A fuga pelo extraordinário determina o a verossimilhança com aquilo que costumamos ouvir e falar. Um belo conto. Continue assim escrevendo vidas de verdade.

    ResponderExcluir
  2. Hoje nasceu meu lindo amigo Davi poético. Pelo menos é assim que sinto. Emocionei-me com o texto e a delicadeza literária com que conduziu um romance marcado pela tragédia. Simplesmente, vejo-me fascinada pela construção dessas letras. Mas confesso, que me derreti por este trecho: “E só você me fez parar no tempo e sentir os pingos de chuva. Não sei por que, mas quando algo me chama muita atenção saio do ar por uns minutos e sinto gotas.[...] Três anos de puro algodão doce.”. Texto lindo. Fofo. Doce. Como quem, magistralmente, o elaborou. Acho que meu lado romântico e exagerado me faz hoje lhe dizer: de todas as suas criações, esse é o meu favorito! Parabéns amigo, gostei demais! Grande abraço querido!Regiane,

    ResponderExcluir
  3. Um soco na cara. Dizem q qdo a gente acaba de ler um conto, se ele for bom vc tem q sentir como se tivesse levado um soco na cara.Sinto-me nocauteada.
    Poxa, menino. Tu es.
    Admirada com o teu potencial de criação.
    um abraço
    lete
    prima ASS

    ResponderExcluir
  4. “Davi, li e reli várias vezes seu texto, já que o havia imprimido para ler no metrô.
    Urubuzinho, sacadas geniais são tua cara, isto já não me assombra mais.

    Porém, nos seus textos, fico meio perdida algumas vezes.
    Não sei se tua idéia é mesmo deixar o leitor perdido, se não quer revelar o que quer dizer pra deixar o leitor preencher como o que ele quer.
    Mas verifique se é este seu objetivo.
    Fiquei sem entender como ele estava super feliz no começo da crônica, se na verdade no fim ele diz que a felicidade durou só três anos.
    Ele amava a menina e engravidou a mãe dela?
    Ele mandou matar a menina?
    Mil perguntas flutuam na cabeça desta sua fiel e apaixonada leitora.
    Klas.”

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

HOMEM DE PALHA [Ensaio sobre o palhaço]

Minha amada bruxa

O mimo que ele não trouxe