Carta para uma engenheira


Edward Hopper

Aqui, neste quarto, onde dormem meus dois filhos, eu penetro na noite feito uma ave estrigiforme, noturna, e pode ficar ciente, não sou um bruxo.
Diante de mim um espelho, com sua película metálica num dielétrico polido, de onde contemplo minha imagem disforme refletida. Uma tênue luminária deixa seu raio passear pelo ambiente, e vai formando aspectos de difração que se movem, assim como as sombras da minha alma, obtidas quando se projetam sobre um anteparo um conjunto de ondas luminosas difratadas. São as direções preferenciais.
Diz-se que as aventuras são feitas para quem ousa se arriscar. Em sendo assim, não me arrisco, pois sou dominado pelo medo, medo de perder, medo de atingir suscetibilidades. Mas não massageio ego de ninguém.  Exceto de quem admiro muito.
         O tempo cicatriza as feridas do corpo e da alma. No meu caso estão cicatrizadas as feridos do corpo, da alma não.
         Mas, Engenheira, não é propriamente sobre isso que tenciono falar. Mas das coisas boas, mesmo que superficialmente. Diz você que sou um homem sábio. Quisera eu. Apenas procuro me informar para transpor os obstáculos.
         Fique certa de que: o que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano.
         Mas eu a admiro sinceramente. Nem sei sobre sua família, mas dever ser de grande importância. Pode ser até que eu conheça alguém que faça parte do seu clã familiar. Mas o que vou relatar aqui é a mais pura verdade.
         Você é tão doce, bonita e poderosa que se impõe pelo olhar, pelos trejeitos, pelo charme... Sensualidade pura. Aquela flor que intitula a modesta poesia que lhe dediquei: Mimo de Vênus é o seu corpo, onde o beija flor vem sugar o pólen mais ativo, aquela fina poeira que esvoaça das anteras das plantas floríferas - você é a mais linda entre os Mimos de Vênus.
         Contudo, como diria o poeta Cosme Lemos ao assumir uma Cadeira na Aacademia Norte Riograndese de Letras: "não são somente os eleitos dos deuses, como o poeta Manoel Bandeira, que desejam a todo custo a estrela da manhã, qualquer homem, por mais simples e tímidos que seja, fitará os céus numa noite, e desejará uma escada miraculosa, como o Patriarca Jacó, afim de atingir as estrelas". Não são somente os que a rodeiam que exercem o poder e atuam no direito de admirá-la, cortejá-la, menos amá-la – uma vez não seria correspondido.
         Realizo mesmo chorando aquilo que prometo sorrindo!
         Em todos os momentos, em quaisquer circunstâncias, você é a maior, a mais bendita e, para mim, sagrada. Só se perde tempo quando não se cresce no amor. Eu tenho amor por quem me dá atenção. Nutro um amor platônico. Não pode ser diferente, pois existe uma distância quilométrica entre o sonho e a realidade, eu só posso sonhar. Nada além. Como diria o cancioneiro, nada além de uma ilusão...
         Concentro-me num prêmio: admirá-la de longe. Jamais chegarei até você. Não é por nada, é porque invejo os que a abraçam e os que podem sentir seu perfume, tocar as suas mãos – SUAS MÃOS que são assim como duas borboletas brancas voando sobre avencas e samambaias, voando sob a luz da manhã.
         Não invejo sua vida de princesa, mas invejo o seu príncipe encantado. Eu queria ser o chão onde você pisa. O travesseiro onde repousa a face macia. Desejaria não morrer, mas sair do meu invólucro e, espiando que nem um avatar, transfigurado no deus Vixnu, beber no cálice da sua boca o vinho que sobrou do banquete de Baco. Tudo isso é quimera. Palavras ao vento que têm o mesmo valor que eu fazer um risco na água, não ficarão nada em você...
         Conheço os meus limites, mas não os aceito, assim como entendo que a morte é uma estupidez, também me revolto com o meu destino mesquinho. Dizem que o nosso destino é traçado no momento da decisão. Mas qual decisão? Fugir? Imiscuir-se nas brenhas de mata fechada, ouvir o som na voz dos animais selvagens? O canto mavioso dos pássaros incógnitos nas folhagens virgens de árvores seculares? Isso é decisão com relação ao meu destino?
         Engenheira, não se vexe. Sou assim, prolixo, ou mesmo parecido com um cigano da etnia caló, elegante no trato, mas sem rumo e, veja bem, sem destino, palrador expressando-se no romani, dialeto originário da Península Ibérica, irmão bastardo do nosso Português. Errante desde os tempos imemoriais da Índia mais antiga, percorrendo o mundo; andarilho amigo dos escravos que vieram da África nas galés de navios negreiros, acorrentados, e os escravos foram para as senzalas, enquanto os ciganos continuaram em liberdade! Eis aí talvez o que sou. Como posso abstrair de que o meu lugar é bem longe daqui?
         Encerro este proêmio, como encerraria Boccaccio no seu Decameron, entre lágrimas e vociferações, ele risonho e belo, alquebrado e malsucedido eu. Para que reflita sobre a minha pessoa, sem tergiversação, admirando-me também, dificilmente como homem, mas calidamente como um amigo sincero, que a estima e, quem sabe? Num exagero de delírio pela sua imagem na sua grandiosidade de me fazer estonteado, até a idolatre, que seja pecado, como é pecado o vitupério, mas se é para defini-la e tê-la nesse patamar, que eu morra pecando.

[AUTOR CONVIDADO] Willian Lopes Guerra é advogado e escritor potiguar, morador do município de Apodi.

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