Infância com gosto de manga


Willian T. Templeton


Publicitário

Você consegue lembrar sua infância? Claro, todos nós conseguimos. Mas falo de detalhes bonitinhos da sua infância: o primeiro sorvete, o primeiro tombo de bicicleta, a primeira namoradinha...  

Eu lembro muito bem da minha. Seu nome era Priscilla. Lembro até o sobrenome. Era um relacionamento bem adulto. Eu levava flores, conhecia os pais, ia a sua casa, ela ia à minha casa. Tudo muito respeitador.

Foi com ela meu primeiro beijo. Eu tinha oito anos de idade. Um selinho, nos longínquos anos 90 (sim, hoje em dia os anos 90 já são encarados como passado distante) ainda era considerado ousadia pra idade. Mas Priscilla também não se ligava muito em padrões sociais.

Pra começar, ela era meio machinho. Repito isso porque era o que minha irmã mais velha dizia. E era ela também quem me resgatava dos bullyings que, óbvio, naquela época não tinham esse nome. Havia um menino muito chato que sempre fazia brincadeiras de mau gosto e já gostava de me dar umas tapas. Depois que ela o jogou na parede e ameaçou arrancar-lhe os dentes, um a um, nunca mais fui ameaçado. Tinha como não amar uma criatura dessas?

Ela conquistou certo respeito na escolinha que eu freqüentava. Os professores a adoravam. Ela também tinha seu quê de pedagoga. Havia uma menina com deficiência psicológica na minha sala de aula. Ela era a única que conseguia lidar com a criatura frágil mesmo usando métodos pouco convencionais, como cuspir na cara da coitada.

Lembro muito bem de um dia que tive ciúmes dela. Estávamos encenando uma peça para o teatrinho escolar e ela era a atriz mais próxima do protagonista. O protagonista, por sua vez, estava adorando esse contato com a menina mais popular do colégio, que era a MINHA namoradinha. E ela, desde já, sabia das artimanhas do ser feminino sobre o masculino. Cantarolava alegremente uma musiquinha assim: “Tenho sete namorados, mas gosto só de um”.

Mantivemos esse relacionamento sério e maduro do “jardim 2” à 3ª série (época que meu entendimento quanto aos níveis escolares era maior). Foi meu maior relacionamento até então: 4 anos. Lindo e perfeito. Até o momento da punhalada pelas costas. Quase uma mistura de Shakespeare (pelo romance), meu querido Aluízio Azevedo (pelo local) e o grande Lovecraft (na minha ótica de chifrado dramático com lágrimas de sangue).

Existia uma brincadeira chamada “cai no poço”. De olhos fechados, escolhíamos uma das pessoas que ficavam de pé na nossa frente e uma opção de alto teor de frutose: pêra, uva, maçã ou salada mista. Pêra era um aperto de mãos. Uva era um abraço. Maçã era um beijo no rosto. Salada mista era um selinho. Na BOCA. Eu sempre me recusava a participar dessa promiscuidade. Ficava horrorizado com quem participava. Já Priscilla, em sua ousadia e independência de mulher que nasceu no século errado, adorava. Achava que não tinha nada demais.

Em uma linda tarde no final do semestre da 3ª série, logo depois das provas finais, resolveram brincar disso: ela e os meninos que eu mais odiava. Por conseguinte, fui ao outro lado da escola brincar com minha gangue: uma das nerds pouco populares e uma menininha que ninguém queria fazer amizade. Não sei por que, mas era ótimo brincar de casinha com elas. Enfim. Esperei. Mas só pouco tempo, resolvi ir lá tirar satisfações.

No meio do caminho, retornei. Não teria coragem. Depois fiquei sabendo que ela tinha beijado outro menino. Pra mim acabou naquele momento.

Era final do ano. Nem dei mais satisfações. Ela entendeu meu silêncio como o fim do relacionamento. Quase um drama global de Manoel Carlos sem Helena. No ano seguinte, resolvi mudar de vida, fazer novos investimentos amorosos. Já era um homenzinho crescido. Com meus 9 anos completos, resolvi fazer o que todo homem crescido e chifrudo faz: dar em cima da melhor amiga dela.

A melhor amiga dela era minha melhor amiga também. Era a mais brilhante maneira de vingar-me de forma doce e cruel. Seria a melhor forma, se ela tivesse aberto espaço pra mim. Mil investidas jogadas no lixo. Acabei desistindo.

Encontrei Priscila no supermercado tempos depois. Quase Eduardo e Mônica caso o romance não tivesse dado certo. No meu posto de cafajeste mirim, fui comentar com meus novos amigos. Por sinal, com o mesmo que ela me chifrou no ano anterior: “Estava feia demais. Cheia de espinhas”.

Parece que ela adivinhou. Ligou-me dizendo que a nossa melhor amiga tinha passado a fofoca que eu não a queria mais. Juntando toda a minha futura testosterona, falei a ela em palavras que pareceram mais fortes do que imaginei: “Não é que eu não te queira. Mas só quero como amigo”. Foi a coisa mais masculina e adulta que meus 9 anos me permitiram fazer.

Agora você para de ler o conto e volta ao título. Infância com gosto de manga. Manga porque, dois anos antes do namoro acabar, estávamos aproveitando o fim da aula para explorar o campinho da escola, cheio de mangueiras. Era uma super aventura para meus 7 anos. Ela foi por um lado e eu pelo outro. Como quem não quer nada, peguei uma manga no chão e arremessei com força para o outro lado. Advinha no rosto de quem a manga explodiu?

Tudo passou. Mudei de escola, cresci e perdi o contato com a maior parte deles.

11 anos depois a encontro. Meu coração disparou com força. Ela estava em um ônibus, em outra cidade, de mãos dadas com uma... menina. A minha tão formosa e corajosa mulher do século 22 tinha achado companheirismo e amor em outra mulher.

Ok. Para dores do coração, cana com limão. Por influência de alguns amigos coloridos, naquela mesma noite, acabei indo parar em uma boate gay. Na mesma boate que ela trabalhava como recepcionista. Dessa vez não pude conter uma abordagem:

- Priscilla, você se lembra de mim? Estudamos juntos na escolinha primária!

Ela olhou bem fundo nos meus olhos. Naquela hora eu tenho certeza que um filme se passou em sua cabeça. Então respondeu, super segura de si:

- Passa logo que você está atrapalhando a fila!

Licença Creative Commons
Infância com gosto de manga de Davi Moura é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com. Permissions beyond the scope of this license may be available at www.blogadorocomer.blogspot.com.

Comentários

  1. O amor tem destas coisas.
    Texto pra lá de gostoso, mas que me deixou com um gostinho triste na boca. Aff, ela podia ter sido mais simpática com você não acha?
    Mulheres são todas iguais, não importa se amam homens ou mulheres, são sempre compliccccaddddassss!”
    Klas

    ResponderExcluir
  2. Valha, me deixou com gosto de quero mais... não esperava pelo final tão brusco. Brusco na atitude da personagem. Mas isso, se queria provocar um impacto, conseguiu. Enredo saudosista de cunho realista.
    abraços lindo!
    Reina.

    ResponderExcluir
  3. Seu texto me move do riso ao choro.Seu texto, dentre as milhares possibilidades de leitura me fez pensar como é doloroso, longo e complicado o processo de se tornar gente. Fiquei com vontade de chupar essa manga. Achei o final maravilhoso, pq assim são as pessoas imprevisíveis, por fim acho q ela revidou a mangada na cara...rs...É a lei do eterno retorno.
    bj meu anjo
    lete
    prima ASS

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

HOMEM DE PALHA [Ensaio sobre o palhaço]

Minha amada bruxa

O mimo que ele não trouxe