Insone ausência
Nos braços de Morfeu - William Reynolds-Stephens |
Professora
É tarde. Meia noite em ponto. Hora de deitar. Amanhã será um dia daqueles, repleto de compromissos, filas quilométricas no banco, patrão chato pegando no pé. Vou dormir.
Como todos os dias, realizo meu ritual antes do tão esperado repouso noturno. Tomo um bom banho. Preparo o leito. Vou até a cozinha, pego um copo d’água e coloco ao lado da cama, hábito herdado de um antigo relacionamento. Programo o despertador para me acordar às seis da manhã. Faço minha oração noturna. E pronto! Estou preparada para cair no sono.
Deito-me. Por um bom tempo, fico a me revolver na cama, como se de algo sentisse falta. Procuro me acomodar confortavelmente em meu aconchegante berço. Quando finalmente encontro uma posição confortável, eis que percebo: você não está ali. Tomo um susto. Jurava que estava comigo! Meu Deus! Cadê você?
Atarantada com tanto trabalho sequer havia percebido sua ausência. Passeio meus olhos pelo quarto e constato: aqui realmente você não está. Tento retomar as lembranças de tudo que fiz durante as longas horas desta cansativa noite. Estou certa de que estava comigo há bem pouco tempo. Em mim, brota um incômodo peso na consciência. Jesus! O que fiz para que você desaparecesse, de repente, sem avisar e me deixasse aqui sozinha, abandonada?
De imediato me chega a atroz resposta. Foi ela. Sim. Tenho certeza que foi. A minha obsessão por trabalho. Foi ela que fez você me abandonar no meio da noite nesta cama fria, em pleno inverno. Não tenho lhe dado, nos últimos tempos, o devido cuidado e atenção. Quantas vezes você se achegou a mim, buscando-me, puxando-me para si e eu, resoluta, pedi-lhe só mais alguns minutos que acabaram por se transformar em horas?! Cansado de esperar, em tantas ocasiões, você voltou e me convidou carinhosamente para ir com você para cama. Porém, por mais que me jogasse seu charme, que me derramasse seus olhares sedutores e me abraçasse com todo o seu ardor de amante apaixonado, eu insistia em laborar no computador, deixando-lhe, incontáveis vezes, solitariamente largado.
Atônita com a recente descoberta, levanto, vou até a sala, viajo pelo corredor que leva até a cozinha, na inútil esperança de que lá esteja. Só encontro o silêncio da louça suja do jantar que adormecera sobre a pia. Na parede, o relógio me olha e solícito avisa: duas da manhã. Ainda sem acreditar que lhe deixei ir embora, abro a janela, busco na escuridão encontrar ao menos o vulto da sua agradável presença. Lá fora, só os grilos que cricrilam censurando meu insofismável egoísmo profissional. Ciente de que me repreendem com total razão, nada posso dizer. Por horas, olho inutilmente as longínquas luzes da cidade acesas, a pensar por onde andará você. Maltratado por mim, em que lar você foi buscar abrigo?
Uma fina chuva começa a cair parecendo solidariamente chorar comigo a sua partida. Fecho a janela e olho novamente para o relógio que da parede acompanha aquele meu sofrível madrugar. Quatro e quinze. Retorno ao quarto, na esperança de que, arrependido, você tivesse voltado para me dar um beijo de perdão. No cômodo onde tantas vezes conjugamos o nosso amor, apenas a constatação de que era vã a minha expectativa.
Volto a deitar. Sem você, sei que não vou conseguir dormir, mas preciso descansar. Amanhã será um dia difícil. Como vou trabalhar depois de uma longa noite em claro, sem você? Impossível responder agora. Preciso descansar, é só o que sei.
Já são quase cinco da manhã. A noite começa a se despedir de mim. Apavorada com o alvorecer que se avizinha, recorro a um antigo hábito de infância perdido no tempo: contar carneirinhos. Incrédula, porém sem alternativa, inicio minha contabilidade... Quando meus cálculos começam a ficar confusos devido ao cansaço, eis que o quadragésimo quinto ruminante do gênero Ovis resolve me afrontar. Propositalmente, ele para e cisca a minha frente, mira-me com um inquisidor olhar de reprovação. Contudo, meu aspecto já cansado, arrependido e devastado pela noite insone parece amolecer o coração do jovem ovino. Seu olhar, agora, parece-me sorrir, como se me absolvesse de todos os pecados. Comovidamente ele se vai. Muitos outros surgem e desaparecem, mas minha mente zonza já se perde naquela sonolenta contagem...
O despertador toca. Seis da manhã. Pesando toneladas, meus olhos aos poucos se abrem. Feliz, vejo, pois, que meu ébano amante voltara e está ali comigo de novo. Mas o dever me chama. É hora de levantar. Levantar? Não! Que se dane o trabalho, a fila do banco e o patrão! Que se dane o mundo! Nada há de me tirar agora dos braços do meu amado e tão esperado Morfeu.
Insone ausência de Rokatia Kleania é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Vedada a criação de obras derivativas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com. Permissions beyond the scope of this license may be available at www.blogdaprofessorinha.blogspot.com.
Quantos mistérios rondam os momentos insones de nossa escritora... as metáforas transformam-se em possibilidades, mas elas só se tornam maiores pelo esmero da construção do período e da musicalidade, só poucas vezes quebrada. Muito bom.
ResponderExcluirO que mais se pode dizer de um texto tão bem trabalho? Esplendido. Muito agradável e detalhista ao mesmo tempo. Parabéns.
ResponderExcluir“ Texto muito bom mesmo!
ResponderExcluirComeço a desconfiar que a insônia é fiel aliada dos escritores.
Tenho um texto começado sobre ela, mas achei que a estava tratando muito mal e resolvi deixá-lo na gaveta.
Inspirador seu texto. Pensei que era um Gato, risos. No fim era o MOrfeu, amante perfeito!.
Beijos.”
Eliana Klas
Aconteceu o mesmo comigo, também pensei que era um gato...kkk Ainda bem que era Morfeu, já que não sou muito fã dos felinos.
ResponderExcluirSeu texto provoca mistério e ansiedade. Devoramos cada frase na ânsia de saber logo o paradeiro do "amante"...
Abraços querida!
Sempre tem um texto que me deixa mais próximo de cada um de vocês. Esse é um dos textos da Rokatia que me fazem ler em voz alta, pois parece que sou eu mesmo que estou passando por isso. E tenho que dizer também que achei que era um bichinho! Hahaha! Adorei!
ResponderExcluirTeu texto mergulha na esfera simbolista. Sentidos se misturam. E claro, dialoga diretamente com o anterior...a lua, o sono, a noite...temáticas envolventes...
ResponderExcluirParabéns, minha linda.
Delicioso texto.
um abraço
Prima ASS
lete