Os doidos também amam


Mendigo - AC



Professora

Dia desses fui comprar pão na padaria, vejam, isto não é uma redundância, pois atualmente dá para arranjar pão em qualquer lugar. A padaria, principalmente aqui em São Paulo, passou a ser mais um espaço de socialização informal, instantânea, impessoal, do que o lugar onde se compra o pão mesmo. Se você for bem simpático com os atendentes pode até receber um bom dia sincero. Ah, sim, estava eu alegre e cantante, porque não é sempre que consigo ir até uma padaria, normalmente se come o que se tem no armário para não perder tempo. Mas neste dia eu cantarolava de alegria. De súbito, engoli o canto. Calei-me. Fixei o olhar no último degrau e lá estava ele. Parado. Sério. Sujo. Tinha o mesmo olhar denso, pregado no horizonte, ao seu lado repousava um saco, com certeza cheio de cacarecos, coisas velhas, catadas do lixo, mas que se pode reaproveitar, tirar uma graninha no ferro velho...
Valha-me Deus! Porque há algumas figuras do passado que teimam em ressurgir abruptamente no presente? Paralisei. Era o Joaquim, o doido. Não tinha como não reconhecer. Tinha a mesma cara de quando eu era uma criancinha. Parece que o tempo não existe para os doidos. Não era porque ele era assim absorto daquele jeito que eu tinha medo dele, porque gente esquisita tem em todo canto, né? Mas peguei medo porque diziam que ele era doido.  A palavra “doido” me assustava. Contavam que tinha emprego, mulher e filhos e num dado dia não reconheceu mais ninguém, saiu pelo mundo. Só uma irmã que ainda teimava em olhar por ele. Joaquim gostava de ser sozinho. Cara amarrada. Olhos sempre fixos no porvir.
Quando ele passava por perto da escola a molecada saia correndo, gritando: “O Joaquim doido!”, “O Joaquim doido!”. Eu que não era besta, e como morria de medo de doido, saía num pinote só. Ele, claro, não gostava dos insultos da criançada e revidava a malcriação com uma sacada no ar, urros e, às vezes, uma carreirinha para espantar mais depressa a turba de crianças.
Outro dia, depois da aula, mãe me arrastou à feira para ajudar a carregar as compras. Quando quase voltávamos, carregadas de sacolas, demos de cara com o Joaquim. Minha mãe nem se abalou, resolveu parar na banca de laranjas e ali mesmo grudei na saia dela. Queria me esconder debaixo da banca, se pudesse me enfiava na sacola. Sempre de olho no Joaquim, que, para meu desespero, colara ao lado da minha mãe. Meu coração palpitava. “O medo me miava” mesmo! Fechei os olhos para ver se a sensação diminua, mas ouvi uma conversa. A curiosidade foi maior e abri os olhos. Era o Joaquim: “Oh, Dona, a senhora me dá essa menina em casamento?”. Pus um olhar de misericórdia sobre minha mãe e nele eu dizia “faço tudo o que a senhora quiser, mas não me dê para esse homem”.  Mãe lendo o pedido em meus olhos, apenas respondeu: “Claro, quando você vem buscar?!”. As mães sabem ser cruéis quando querem. “Quando eu arrumar minha casa”. Foi-se grave, carregando o saco. desci a rua, a ladeira da feira, com uma raiva infindável. Puxa, vida, nem era uma filha tão ruim para ela me dar assim de graça. Quando chegamos em casa, mãe contou a história para todo mundo e pela chacota, desde então, fiquei conhecida como a noiva do Joaquim. Maldade do destino, nunca mais fui pedida em casamento. Só o Joaquim teve essa coragem... E quando vi Joaquim ali parado, que não mais me reconhecia,  só pude olhá-lo do degrau da padaria, demoradamente. Só Joaquim me amou de rompante.


Comentários

  1. São textos como esse que me fazem ter aquele frio na barriga de início de namoro. As palavras surgem simples e com perfeição. A cada dia mais eu tenho orgulho em fazer parte desse seleto grupo.

    Arlete, casa comigo?

    ResponderExcluir
  2. Caso! Claro! rs

    bj anjo
    lete

    ResponderExcluir
  3. Crônica do cotidiano, escrita de maneira leve, divertida e me deu uma impressão de saudosismo.

    Esta coisa de “louco”, sobretudo os que se cansam da vida,e tendo família se isolam dela em seu mundo particular,enfim, esta coisa ai é bem complicada para eu comentar, prima. Mesmo que em crônica, é impossível não levar para o lado pessoal.



    Viver de perto com isto pode não ser muito divertido mas nos garante uma certeza:

    Talvez só os loucos sintam o amor de verdade. Talvez a frase certa não seja : os loucos também amam, mas sim, só os loucos amam de verdade.

    Enfim, filosofias a parte, parabéns pelo texto prima!



    Beijão.

    ASS Klas.

    ResponderExcluir
  4. Que texto lindo e gostoso de ler. Comi cada letra, cada palavra. Admiro essa forma livre, espontânea e verdadeira com que trata os assuntos mais simples. Quando comecei a ler, confesso, nunca imaginei que a suposta narradora-personagem fosse a musa do Joaquim, figura que me arrancou uma imensa doçura. Adorei a sutileza e a ingenuidade que exala através do pedido dele, lindo, lindo, lindo.
    Sabe outra coisa, há dias estava pensando num maluco que andava pela rua em que morava quando criança. A lembrança dele ficou martelando na minha cabeça a ponto de eu querer materializá-lo num texto. Depois que li o seu, senti-me motivado a trazer à tona essa lembrança. Mas sei que não tratarei do tema com a mesma leveza literária que vc tem... Admiro vc demais!BJS!
    Regiane.

    ResponderExcluir
  5. Me identifico com esse texto pela marginalidade, tanto da escrita quanto dos sujeitos. Bastante verossímil torna a leitura agradável e reflexiva. Mais uma vez a autora se revela em pequenos pedaços, sempre recorrendo a infância ou a lembranças de antes.

    ResponderExcluir
  6. Adorei!!!
    Muito verdadeiro!
    Sempre que leio suas crônicas vejo sua face!
    Parece até que você que está lendo para mim!!
    Queria eu ter essa facilidade em me expressar e principalmente em redigir textos!

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

HOMEM DE PALHA [Ensaio sobre o palhaço]

Minha amada bruxa

O mimo que ele não trouxe