Zé Bedeu


Mendigo Lapita, pintura de Henrique Pousão


Professora

__ Corre, corre, lá vem o Zé Bedeu!
Pronto, instalava-se aquela correria. Feito espalha-brasa, meus colegas e eu entrávamos na bodega do Cezinha para nos escondermos. Lá, disputávamos cada centímetro do balcão até termos certeza de que Zé Bedeu havia sumido completamente.
Nunca soubemos onde ele morava, nem por que levava aquele nome. Simplesmente, ele surgia quando menos esperávamos. Coincidentemente, sempre que estávamos brincando de pega-pega na calçada...
__ Cooooooooooorre, se não o Zé Bedeu pega!
Só de ouvir o nome daquele homem, eu me assustava. Lembro-me que tremia feito vara verde cada vez que o via passar na rua. Às vezes, ficava escondida na sala da minha casa espiando através das venezianas. Zé Bedeu andava manco. Um de seus sapatos tinha mais altura no salto que o outro. Os olhos eram miudinhos e sombrios. O cabelo era fino e espetado. O rosto era meio deformado. Mas, o que me intrigava mesmo, era a quantidade de roupas que o envolviam: uma calça por cima da outra; blusas sobrepostas e, por último, uma de manga comprida no tom marrom – sempre a mesma. Para ser sincera, não sei como ele aguentava se vestir daquele jeito sob o sol de Fortaleza...
O fato era que Zé Bedeu me incomodava. Quando ele nos via brincando na rua, acelerava os passos em nossa direção e sorria desconfiado. Os dentes eram grandes e afastados um do outro. Triste de se ver. Como nos escondíamos dele, nunca soubemos se ele queria brincar conosco ou, nos fazer prisioneiros em alguma casa abandonada. Abandonada feito ele.
Além de toda aquela trágica fisionomia, tinha a fala meio presa. Descobri isso no dia em que estávamos debaixo do balcão do Cezinha e ele resolveu pedir não sei o que. Mas como todo bom bodegueiro, meu vizinho adivinhou rapidinho o seu desejo.
Nossos pais colaboravam para aumentar nosso medo. Bastava qualquer malcriação para a ameaça ganhar sonoridade: “se não me obedecer, quando o Zé Bedeu passar vou deixar que ele leve você!”. Coitado, vá saber se ele iria querer a gente.

O certo era que, quando o Zé Bedeu aparecia na Rua Mato Grosso, o barulho dos seus pés rangia dentro do meu peito e me fazia imaginar prisioneira de sua triste figura, que de Quixote, nada tinha. Nada de Rocinante, nada de escudeiro. Só um entulho de roupas jogadas sobre seu corpo e um sapato mais alto que o outro... pelo menos, era só isso que, naquela idade, eu conseguia enxergar nele.

Mas, um dia, fomos surpreendidos com a notícia:

__ Zé Bedeu morreu...

__ Como?

__ Atropelado!

__ Pobrezinho, nunca fez mal a ninguém...

Conscientemente, talvez nunca tenha feito mal a ninguém, mas eu senti, durante muitas noites, que ele me fazia, mesmo sem saber. Eu tinha pavor da imagem dele... sua aparência e sua forma de caminhar me impactavam tanto quanto o corcunda de Notre-Dame.

Desde aquela notícia, nunca mais corremos assustados pela Mato Grosso, nunca mais aquele friozinho apertado nos corroeu o estômago. Cezinha sentira alívio, certamente, porque nunca mais teria a sua bodega invadida pela meninada apavorada. Meus colegas, a partir de então, estariam a salvos porque não mais se renderiam às ameaças dos pais...

Naquela tarde em que soube do ocorrido, lamentei muito ao saber da forma como o Zé Bedeu tinha morrido e, por incrível e estranho que possa parecer, passei a sentir falta das vezes que ele corria em nossa direção.



Comentários

  1. Eu poderia "simplesmente" ler, como faço todos os dias ao encontrar uma nova atualização nesse blog. Mas agora foi diferente. "Zé Bedeu" me lembrou algumas figuras que também estiveram presentes na minha infância. Figuras que me fizeram correr de medo, e depois bolar de rir com tamanha "moleza"! Coisas daquele tempo bom, que dá vontade de sentir de novo. E hoje, embora o medo sempre apareça, aquela pontinha de emoção dos tempos de outrora, que se assossegavam ao avistar a mãe da gente abrindo os braços pra nos acalmar, nunca mais será a mesma.
    Eu amei o texto.

    Parabéns Regiane!!


    Ps.: Estendo meus parabéns a todos os autores. A cada dia temos textos ainda melhores!!

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  2. Reina, adorei o texto. Você escreve muito bem, e deve pensar seriamente em continuar, continuar, continuar.
    Publicar seus textos, como este, será um presente aos leitores.
    Beijos.”

    Eliana Klas

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  3. Regi, olha q me lembrei de Inacinha, eu tinha tres anos mas nunca me esqueci do meu primeiro doido. Inacinha. E foi qdo morava em Fortal, nessas idas e vindas da minha mae...
    Doidos me fascinam e seu Ze Bedeu não foi diferente.
    um bj amada
    lete
    prima ASS

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  4. A cada dia a Regiane está se sainda melhor, dizendo somente aquilo que deve dizer, evitando redundâncias, repetições e clichês. Mesmo para aquele que não pretende "ser escritor" - visto que essa classificação, quando não mata, aleija - é preciso ter cuidado com as palavras, as arrumando como faz o japonês na hora de compor o prato e depois como Graciliano, lavar, enxugar e quarar... parabéns

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  5. O texto nos remete a infância como um rápido portal. Cada um de nós teve seu "Zé Bedeu" em algum momento das brincadeiras infantis. Foi bom ler isso. Conseguiu me emocionar de verdade!

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  6. Esse texto me fez voltar no tempo. Zé Bedeu faz, com certeza, parte da história dos moradores da rua Mato Grosso. Anos 80...quem não lembra do Zé Bedeu, o tormento das crianças e a salvação dos pais? Meus irmãos, mais velhos que eu, aproveitavam para me amedrontar. Saudade boa!!!! Acertou em cheio, amiga.

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  7. Olá graciosa REGI, além de excelênte professora é, certamente, uma ótima escritora. Parabéns pelo bom texto escrito sob a perspectiva de uma escritora polivalente,gerreira e vencedora. Apesar de simples num certo sentido, é um texto profundo por que os fatos relatados nas sus entrelinhas ainda ocorrem na realidade em voga, porém as caianças de hoje já não têm o mesmo medo que tinham as crianças de um passado não muito distante. Esse texto me faz recordar momentos importamtes de minha infância "que os anos não trazem mais", por "eu perdi o meu medo da chuva",isto é, por que hoje não tenho mais medo dos Zé Bedeus de outrora. Um abraço e parabéns pelo gracioso texto...

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  8. Rê, lindo o modo como vc nos puxa pelo braço e nos leva de volta ao nosso mundo da infância. Seu texto, apesar de aparentemente retratar lembranças de sua meninice, se adequa certamente à infância de todos e de cada um que desavisadamente passearem seus olhos sobre o seu Zé Bedeu. Adorei a viagem. Obrigada por nos presentear com obras primas como esta. Bjos.

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  9. Boa noite como vai a minha escritora predileta? parabéns mais uma vez pelo texto como sempre muy bueno.Abraços Lúcia Marques.

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