Aula de amizade


The Hug - Romero Britto


Professora

Não existe coisa mais preciosa do que amigo. Eu sei que isso é clichê. Mas e daí? Uma verdade dessa magnitude precisa ser dita e repetida sempre. Não há como negar a importância que nossos amigos têm em nossas vidas. Cada um com suas peculiaridades e limitações acabam contribuindo para a nossa edificação. São sorrisos, abraços, palavras e atitudes que vão sendo acrescentados como tijolos na construção do que somos e do que ainda seremos. É bem verdade que muitos são fakes que a vida nos apresenta, mas também se encarrega de desmascarar, às vezes da forma mais cruel possível. Contudo não devemos por isso nos privar da delícia que é ter amigos.  Com o tempo, a gente acaba aprendendo a jogar fora o joio e saborear com toda fome o trigo da amizade.
Dia vinte de julho é considerado o Dia do Amigo.  Dizem que a data foi obra de um hermano que, para celebrar à chegada do homem à lua, escrevera quatro mil cartas em vários idiomas e para diversos países com o intento de criar esta data comemorativa. E eu que achava que gostava de escrever! Bem, para ele, ao pisar no solo lunar, o homem demonstrava que, unindo-se com seus semelhantes, nada lhe seria impossível. A idéia aparentemente deu certo. Hoje, muitos países já adotam o vinte de julho. Assim, é comum encontrarmos, nesse dia, nossas caixas de mensagens lotadas de dezenas de mensagens. Muitas, é verdade, são totalmente dispensáveis, pois mesmo embrulhadas nas mais belas palavras, sabemos que não passam de meras formalidades ou da mais pura falsidade. Porém há alguns amigos que de muito pouco precisam para nos emocionar. Uma simples ligação. Um oi apertadinho entre uma garfada e outra, no intervalo do almoço. Um abraço forte no fim do expediente. Um limitado “Feliz Dia do Amigo” torpedeado de longe pelos ausentes. Qualquer intenção de carinho já nos chega como o mais valioso dos presentes.
Ontem, do meu jeito meio torto de ser, tentei presentear àqueles que tanto gosto com alguns desses mimos. Sei que a data é só uma data. Mas já que ela existe, por que não tirar alguns minutinhos desse dia para homenagear aos nossos irmãos de alma? A alguns, enviei e-mails, torpedos a outros, liguei para alguns distantes e abracei os mais próximos. E, desse modo, tentei, mesmo afogada no meu ostracismo peculiar, mostrar a todos o quanto são importantes para mim. Em alguns casos, as palavras mal saíram. Mas senti no olhar, no tom da voz e no retorno das mensagens que experimentavam comigo a felicidade de podermos dividir uma amizade sincera.
Quanto às homenagens que recebi, nada a reclamar. Em umas só encontrei palavras soltas que, por mais rebuscadas que tivessem, nada diziam ao meu coração. Mas para que afinal serve a lixeira? Haverão de por lá dormir até exalarem seus últimos suspiros. Entretanto muitos foram os gostosos afagos recebidos e cá estão todos confortavelmente acomodados nessa caixinha de amor que guardo dentro do peito esquerdo, onde conservo para sempre os que me cativam. 
Porém foi de uma amiga de uma cidade vizinha que recebi a maior prova de amizade que já vi. De ímpeto, resolvi lhe dar um telefonema. Aparentemente, liguei apenas para desejar o tradicional “Feliz Dia do Amigo”. Mas no fundo, confesso, queria abrir o peito, contar dos meus tropeços, expor minhas angústias e decepções, aliviar o peso das cobranças da família, do estresse do trabalho, do amor não correspondido. E, como egoísta que sou, logo que me abriu a porta do seu precioso tempo, derramei sobre ela todas as minhas dores, dúvidas e medos. Falei, falei, falei, numa velocidade egocêntrica, como se temesse que o telefone pudesse, a qualquer momento, se desintegrar do outro lado da linha. Ela, com uma paciência interminável, ouviu serenamente meus lamentos e com voz, ora tênue ora firme, me alimentou de forças e esperanças, me suavizou as dores e me acalmou o coração. Só quando me encontrava prontamente aliviada de minha pesada carga, ensaiando já uma despedida, pude então perceber o quanto ela também estava triste, preocupada e temerosa com seus nada escassos problemas. Praticamente sem me lançar palavras, em poucos minutos, revelou-me que seu peito também se encontrava ferido pelas ações daqueles que não sabem amar e confuso diante do futuro que precisava delinear. Nesse momento, meu peito se inflamou de remorso. Como pude eu ser tão egocêntrica! Quanto individualismo o meu que sequer me deixara ver que ela muito mais de mim necessitava! Que amiga era eu que não havia sido capaz de oferecer-lhe o meu silêncio e o meu falar para lhe ajudar? Ela, porém, na sua doçura de sempre, me abrandou o coração, dizendo que me ouvir já era o suficiente. O afagar dessa frase me revelou o verdadeiro sentido da palavra amizade.  Mesmo imersa em seu mar de problemas e sofrimentos, ela foi capaz de pegar sua dor, dobrá-la e guardá-la no bolso para cuidar da minha, numa prova de total bondade, abnegação e amor que eu jamais havia visto na vida. Aquela jovem amiga, que sempre me classificou com tantos títulos, predicados e adjetivos, deu a esta professora, naquele vinte de julho, Dia do Amigo, uma verdadeira aula de amizade. 


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Comentários

  1. Querida amiga, a simplicidade do seu texto e carga de lirismo que contém nesta crônica, revela toda a sua sensibilidade para os assuntos que a rodeia. Como vc disse uma vez, a literatura nos dá a liberdade de 'ficcionar, o que não retira (de vc) a percepção aguda para tratar de qualquer assunto.
    Seu texto me fez recordar dos amigos 'fakes' que fui tratando de apagar do meu dia a dia e dos poucos que se tornaram tão essenciais para mim.
    Um tanto de alegria e saudosismo me chegaram após a leitura do seu belo texto. gracias!

    bjsssssss.

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  2. “Professora ASS, eu juro que tento fazer meus comentários mais curtos, mas é impossível.

    Ao mergulhar nos textos dos amigos, me perco e me encontro tantas vezes que saio desta piscina com a respiração suspensa.
    O comentário que faço quase sempre é como o respirar profundo que damos depois de um mergulho as profundezas de um rio.

    Durante o ano recebo muitas mensagens atribuindo a datas diferentes o dia do amigo.
    O dia 20/07 sempre foi o dia certo para mim para esta comemoração, pois nos últimos 30 anos meu irmão Wilton Paulo organiza um encontro neste período, para reencontrar amigos. Portanto desde os meus seis anos que reconheço esta data.
    Tenho um texto na gaveta que acabo de decidir postar semana que vem que fala da amizade, uma das coisas nas quais ainda acredito nesta vida.
    Neste dia 20/7 eu estava em um hospital, (outras histórias que um dia contarei) lugar onde, quando tenho que ir, passo o dia todo com minha filha há cerca de 13 anos.
    De lá não vi não recebi e nem mandei nenhuma mensagem.
    Mas o peito carregado de certezas sempre sente a energia dos amigos. Poucos.


    Quando cheguei na quinta o primeiro e-mail que vi sobre esta data foi o seu, Rokátia.
    Fiquei feliz ao perceber que a professora tbém comemora a data certa.

    E mais feliz fiquei agora lendo seu texto.

    Querida, não te lastimes por não ter ouvido sua amiga.
    AS verdadeiras amizades são assim.
    Dias sim, dias não...dias ouvimos, dias falamos, e dias há que só de ouvir a dor do outro o peso da nossa fica menor.

    Aprendi que as verdadeiras amizades são como árvores.
    Não é necessário regá-las como plantinhas indefesas.
    Elas suportam invernos inteiros, desertos de verões, várias tempestades.
    Suportar a distancia, a ausência, os erros, os açoites.

    Amigos são eternos, por isto serão bem poucos.
    No fim da vida quero ter cultivado pelo menos os seis para carregarem as alças do meu caixão.
    (sou caçula e pela lei natural meus irmãos “embarcam primeiro no trem das sete”).

    Enfim viajei no seu texto, e te agradeço a informação sobre o jeito que a data foi criada. Nunca soube o pq deste dia.
    Emocionada.
    Beijos, professora.
    E foram os amigos zegeraldianos que me livraram da loucura e da solidão quando desfiz um casamento de 10 anos.
    Enfim, nada mais a declarar.

    Ass Klas, Maria bonita”

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  3. Texto simples, mas com uma grande carga de significado e possibilidade. Bem escrito e milimetricamente pensado para alcançar um objetivo. Parabéns.

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  4. É muito bom ter amigos de verdade, pois irmãos de sangue, nem sempre são nossos amigos, mas as pessoas que elegemos como amigos, são sempre jóias que guardamos no peito e na mente, mesmos estes não estando ao nosso lado todo dia, nem falando sempre conosco, mas são aqueles que sempre que nos falam, ou nos veem, fazem com que nossos olhos brilhem de um modo diferente, nosso coração aumente sua frequencia cardiaca, nossa mente se lembre daqueles bons momentos sempre vividos na sua presença, estes são nossos verdadeiro amigos, porque não chama-los de verdadeiros irmãos por afinidade. GRANDE BEIJO MINHA AMIGA.

    Augusto Néo

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  5. Ler os textos da Rokátia é como se sentar numa mesa farta de gostosuras estando morredo de fome. É para comer até espocar o bucho.rs...
    Deliciada,

    Um grande beijo
    Prima ASS
    lete

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  6. É o tipo de texto que começamos com um sorriso no rosto e terminamos com o mesmo sorriso, só que molhado de lágrimas. Quem nunca passou por uma situação dessas?

    Os mais sábios dizem que precisamos aprender a ouvir. Só que às vezes a dor é maior e somente nos permite falar.

    Rokátia, sinta-se abraçada!

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