A bruxa e o Anjo


Decapitação de St Dorothea - Hans Baldung


Secretária

Ela penteou seus longos cabelos negros, já sentindo saudades daqueles fios que eram seu manto protetor.
Para onde ia não podia levá-los.
No espelho os olhos, redondos e negros, fitavam-na com receio.
Seus olhos de anjo a protegiam e, no fundo deles, se viam a certeza da dor em vê-la partir.
Ângelo também, tão lindo e perfeito, não poderia acompanhá-la.
Loueiny ou Lourdes, como sua mãe preferia, estava com medo, mas precisava ir.
Chegara o tempo de cumprir sua missão.

Deveria se vestir de cinzas, rasgar suas vestes nobres, triturar suas unhas perfeitas. Cortar os lindos cabelos.
Para onde ia a beleza era vista como falha de caráter, sobretudo a beleza feminina.
Ou pior, algumas vezes a beleza corrompia o caráter e fazia da mulher mero objeto de luxo.
Sua pele lustrosa despertaria pensamentos dos quais ela seria posteriormente culpada.
Melhor cortar os cabelos e esconder os olhos atrás daquelas grossas lentes recém inventadas.
Assim, talvez, teria paz.
Sua beleza que sempre seduzia e lhe dava poder para levantar ou derrubar, não só um homem, mas também um Reino; nunca seria vista como força.
Jamais conseguiriam ver a sábia bondade por trás de sua beleza tida como maligna.
Sua assombrosa sabedoria conquistada em anos e anos de contemplação à Mãe Natureza e afiada com ouvidos atentos para a voz do que não se vê, seria tida como “macumbaria”, blasfêmia ou petulância.
Pior: sua sabedoria seria vista como Pecado.
Melhor calar.
De onde ela saía, as mulheres deviam aprender a calar.
A mulher não podia pensar e muito menos usurpar o lugar que os homens defendiam há séculos: o de Senhores da Criação e preferidos do Criador.
Mulheres que se colocassem como imagem e semelhança do mesmo Deus seriam jogadas na fogueira, seriam malditas, seria banidas.
Mulher só podia ser de dois tipos:

 ­_ as que conheciam seu próprio poder e escondiam seu conhecimento, ou ainda que assustadoramente belas disfarçavam-se de messalinas e manipulavam os Reis, mas, com isto, eram castigadas à solidão.
­_ as que negavam sua própria força, escondiam-se de si mesma e tentavam viver em paz com seus homens e seus filhos.

De onde Lourdes vinha toda mulher era bela.
Cada uma com seu tom e sua cor.
Cada qual com sua textura.
Narizes, seios, nádegas de todos os tipos e formatos.
Cabelos crespos, lisos, ondulados, todos.
O Belo estava no imperfeito.
Cada qual com seu segredo.
Todas fascinantes.
Mas aprenderam desde cedo o preço de serem mulheres e, amordaçadas, foram encurraladas em um padrão do que é belo.
E o belo mudava de tempos em tempos, depreciando as que não se encaixavam.

Lourdes olhou todas as imagens, escolheu o tipo mais pacato que pode e saiu.
Sua missão era penosa.
Sabia, por antecipação, que venceria.
Mas sabia também que para vencer teria de carregar no corpo todas as dores e misérias de sua luta.
Sabia que se sentiria só.
Temia que sozinha não fosse possível conseguir.
Mas era esta a condição para sua vitória: ela teria de ter coragem de partir primeiro.
Sozinha.
Depois, Ângelo a seguiria.

O grande problema é que, talvez, nunca mais se encontrariam.
Ele jurou que não a deixaria.
Ela jurou que não o esqueceria.
Beijaram-se com amor, encantados e apaixonados que eram um pelo outro.
Tocaram-se com fome e sede um do outro.
Separaram-se como que cada um arrancando de si seu próprio membro.

A grande porta se fechou atrás da jovem e muito sofrida mulher.
Arrastou todas as suas dores pela estrada, sozinha e com medo.

De longe, da janela da grande casa branca, Ângelo chorava.
O amor de sua vida estava no corpo daquela mulher.
Bruxa? Louca?
Não.
Sua fada, sua mulher, seu grande amor.
Ele sabia que ela carregava no peito a espada que matou, antes dela, dezenas de profetas.
Ele sabia que aquela mulher, a mulher de sua vida, era uma feiticeira.
Sabia que ela morreria mil vezes em mil fogueiras diferentes sem nunca desistir de cumprir sua missão.
E ele? Ele era um anjo, calmo e manso, que só teria nesta vida o legado de amá-la, protegê-la e perdê-la dezena de centenas de vidas.
Ângelo Chorou.
E a amou ainda mais.

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A bruxa e o Anjo de Eliana Klas é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Vedada a criação de obras derivativas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com. Permissions beyond the scope of this license may be available at www.eutodososdias.blogspot.com.

Comentários

  1. Hoje seu texto me fez lembrar de uma poetisa que admiro muito: Sor Juana Inés de la Cruz, mexicana.Em pleno sec.XVII quando a mulher era destinada ao casamento ou ao celibatário, decidiu enfiar-se num convento a fim de ter acesso aos livros. A sede de conhecimento a fez escolher pela clausura que a possibilitava o contato diversas leituras. Ali ela poderia ler e escrever. Tinha tempo para dedicar-se aos estudos. Não foi à toa que foi perseguida por conta da força da sua poética. Livre e ousada. Cuspia as palavras na cara dos sacerdotes, dos bispos, dos homens e do machismo. Foi a primeira mulher latina-americana a enfrentar, na literatura, os "Senhores da Criação , como vc diz no texto. Sua missão foi penosa, mas abriu caminho para que outras tantas mulheres, como vc, pudesse ter seu espaço dentro do universo fabuloso da literatura.
    Seu texto Klas, deixa ecoar as vozes de muitas mulheres que foram ou que são massacradas por suas escolhas ou pelo que são.
    Belo texto.
    Abraço mossoroense!
    Regiane.

    "Hombres necios que acusáis
    a la mujer, sin razón,
    sin ver que sois la ocasión
    de lo mismo que culpáis;

    si con ansia sin igual
    solicitáis su desdén,
    por qué queréis que obren bien
    si las incitáis al mal?" (Sor Juana Inés de la Cruz)

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  2. Tema bem escolhido. O texto tem suas características e repetições, o que marca seu estilo. Termina bem, cumprindo a obrigação a qual se propôs. A insignificância da mulher mesmo ante o amor que se quebra pelas regras.

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  3. O lirismo da Klas se transfigura e nos toca. Cada momento de escrita há nela uma voz lirica mto forte q nos toca e nos comove. Sempre!
    Obrigada pelo texto de hj

    um grande abraço
    prima ASS

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  4. Essa nova característica da Klas que eu tanto falei é simplesmente uma faceta que eu desconhecia.
    Acho que estranhei de início, pois era incrivelmente distante do meu mundo e do meu estilo de escrever.
    Hoje consigo ver uma Klas mais tocante e sensitiva até.

    Frase que valeu toda a leitura: "Sabia que ela morreria mil vezes em mil fogueiras diferentes sem nunca desistir de cumprir sua missão."

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