E MENTIR, O QUE É?

Mentira - O Serrano


“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”

O axioma que diz que “a mentira tem pernas curtas”, é muito antigo. Ainda não descobri de onde veio. Pode ser que nem descubra, sequer iniciei as pesquisas para tal finalidade. Mas o grande poeta Fernando Pessoa, que reputo um dos maiores de todo o mundo, e com certeza o mais destacado da língua portuguesa, deliciou-nos com uma poesia extraordinária, intitulada “Poema em Linha Reta”. Acima apresento os dois primeiros versos que mais parecem assim como aquele durão que, o que tem para dizer, diz na cara. Desmascara o mentiroso sem meias palavras.
As novelas da Globo, por exemplo (e das demais que apresentam esse tipo de dramalhão alienante, também) são escritas em cima de mentiras. Para que? Para, ao final, o bem vencer o que se lhe opõe. Personifica a mentira, lhe dá ares de verdade, machuca, o sofrimento é a tônica e oferece-se o fel para, depois, vir à redenção, a esperança e que tudo se esclareça.
Mas na poesia de Fernando Pessoa, não! O mentiroso fica sem jeito. Vamos para os versos seguintes:

“E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo”.

De outra feita a gente escuta: “a mentira só dura enquanto a verdade não chega”. Mas os mentirosos se vangloriam contam fatuidades, enlouquecidos gabolas que pensam estar sendo os maiores. O poeta português os derrota com maestria, e os mentirosos (adeptos, sem o saberem, de Eubúlides de Mileto, que viveu no séc. IV a.C – que tinha a seguinte forma para a mentira: se alguém afirma “eu minto”, e o que diz é verdade, a afirmação é falsa, e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira e, por isso, novamente falsa) apegam-se a Benjamin Constant (1767-1830). O pensador francês que dizia que certas mentiras são necessárias. O incrível é que o homem que enfrentou Napoleão por suas ambições marciais, deixou o grande filósofo alemão, Immanuel Kant, sem saber o que dizer quando lhe perguntou se não deveria mentir para o assassino não revelando onde estaria sua vítima. Kant ficou sem jeito, gaguejou e se saiu dizendo que se deveriam ser vorazes uns com os outros para sustentar a base da sociedade, que é a confiança. Immanuel Kant era irremediavelmente contra qualquer tipo de mentira. Benjamin Constant defendia algumas mentiras como forçosas.
Mas Fernando Pessoa falava a verdade como quem mente. Os que conhecia mentiam tentando passar uma verdade inexistente. Busquemos mais alguns versos do belo poema:

“Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...”

Isso é uma verdade! Conheço muitos que não devem a ninguém; nunca foram a uma Delegacia; são sempre viris naquele momento preciso; que nunca beberam, jamais fumaram; só falam a ‘verdade’. Fernando Pessoa os ridiculariza. Faz troça com essas pessoas inescrupulosas, os príncipes de araque. Mas que fiquem sabendo que as mentiras defendidas por Benjamin Constant não são essas banais e torpes, não! Seriam mentiras para que se obriguem como último recurso para evitar vexames maiores e até conseqüências fatais.
O Poema Em Linha Reta até se parece comigo. Vejamos:

“Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?”

Pois aí está a verdade sobre a mentira, sobre a mediocridade dos que não se olham no espelho e deixam de aparecer para os demais como pessoas de bem, e, o sendo, não precisariam revelar porque suas ações lhes tirariam o véu.

Mas mentir, o que é? É dizer algo que se parece com verdade? É contar estórias que não temos que olvidar? Não. Mentir é falta de caráter, a não ser as mentiras que aconselha Benjamin Constant, já acima especificadas. As demais terão Fernando Pessoa para destruí-las com o pensamento em versos perfeitos:

“Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza”

Reflitam sobre o significado da mentira e leiam com atenção a poesia mais contundente contra os ridículos gabolas e mentirosos do mundo. Noutra ocasião eu mostrarei de onde veio e como nasceu “a mentira tem pernas curtas”, que Hitler pensou que era uma fábula, porque dizia que uma mentira repetida muitas vezes virava verdade. A despeito de sua mente doentia, mesmo assim, se deu muito mal.

[AUTOR CONVIDADO] Willian Lopes Guerra é advogado e escritor de Apodi – RN.

Comentários

  1. “Rapaz, seus comentários sempre pertinentes, e este teu texto me fazem jubilar por lhe ler por aqui!

    Eu costumo dizer que sou uma contadora de histórias, adoro aumentar um ponto e deixar com cara de riso o que era dor.
    Ou vice e versa.
    Todavia separa a história da mentira hipócrita sempre foi meu objetivo.
    Este texto do Pessoa sempre me falou fundo, minha história não é das mais bonitinhas e já ouvi algumas dezenas de vezes conselhos “velados” no intuito de me fazer não contar minhas “vergonhas” e “derrotas”, sobretudo para minha filha, de quem eu devo ser “exemplo”...
    Minha resposta sempre foi:
    - Eu não posso me envergonhar de quem sou. Não é a história mais bonita, mas é a minha história verdadeira.Esta sou eu, e cada engano fez de mim o que sou. Se minha filha não puder ter orgulho destas verdades, não posso lhe contar outras...que serão mentiras. Bonitas, mas mentiras.
    Enfim amigo, belo texto, que me faz ter coragem, de continuar confessando os socos que tomei.
    Grata por sua ilustre presença.
    ASS Sudestina Eliana Klas.”

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

HOMEM DE PALHA [Ensaio sobre o palhaço]

Minha amada bruxa

O mimo que ele não trouxe