Esquecida


Eduardo Laner

De olhar perdido refletido no espelho, delineia os grandes olhos verdes de negro no meio de muitos batons, o rosa choque é o escolhido. Veste os jeans justos e o top de alças com um decote generoso. Calça os saltos altos tirados da sapateira da mãe. Olha-se ao espelho uma vez mais, pega na mochila com um maço de tabaco a preenchê-la. Nos bolsos o isqueiro com flores brancas que tanto a encantou acompanha-a sempre.
No hall da entrada ouve a mãe gritar da cozinha com o irmão de três anos, parece que deixou cair comida para o chão, mal sabe agarrar num garfo, “pobrezinho”, pensou ela. Sem olhar para trás, fechou a porta atrás de si, desce cada degrau com algum sacrifício, pensou ser mais fácil andar com os sapatos elegantes, fazia-lhe parecer mais alta. Sempre foi gozada pela sua altura, ou ausência dela.
De cabeça erguida e coração ferido desce a rua em direção à escola, planeia em segundos o percurso mais fácil a pisar.
Dentro dos portões, o porteiro abana a cabeça, um grupo de raparigas cochicha algo e riem-se. Ela só deseja chegar atrás do pavilhão e encontrar-se com os outros.
Os rapazes e a rapariga acenam-lhe quando ela chega. “Senta-te aqui, fuma um!”
Ela senta-se perto de um dos rapazes e pega num cigarro, sorri algo nervosa, mas já não era tão difícil travar o fumo como de início. Finalmente sentia-se aceite por alguém.
Não falavam da sua altura, dos olhos verdes grandes, nem do cabelo emaranhado difícil de pentear.
Em casa, nunca se preocupavam a que horas chegava ou saia. Se frequentava as aulas, era indiferente para eles a sua presença e habituara-se cedo refugiar-se no seu canto, tentando abafar os gritos da mãe e do pai alcoólico e os choros do irmão.
Mas, aquele rapaz de estrutura generosa estendera-lhe a mão, levou-a até ao seu grupo de amigos; sentiu-se capaz quando ele a beijou-o e a tornou mulher.
Acompanhava-os por todo o lado, queria ser aceite. Ela sentia orgulho gozar com os outros, cuspir para o chão, roubar pequenos objectos em lojas convencionais e o grande dia tinha chegado, tinham planeado durante dias o assalto a uma miúda nascida num berço de ouro, não iria fazer-lhe falta o telemóvel ou os euros que traria na carteira, pensavam eles.
Fizeram-lhe uma espera nessa tarde, cada um encostado a um canto, o rapaz bem estruturado abordou a miúda com a desculpa de encontrar uma loja de skates e a miúda com boa vontade tentou explicar onde ficava a mais próxima. O outro se aproximou dela arrancando-lhe a mochila das costas, abriu-a, mas no seu interior só encontrou livros e estojos. “Que porcaria é esta?”
A rapariga agarra-lhe no pulso com um apertão “Tem nos bolsos de certeza.“
Ela jogou-se aos bolsos, mas nada encontrou. A miúda para se defender, deu-lhe um pontapé nas canelas e surgiu uma briga. Era a primeira vez que ela batia em alguém. Sentia-se selvagem, raivosa, porque bateu-lhe ela. Não lhe fazia falta o telemóvel de topo de gama que tinha no bolso, o pai poder-lhe-ia comprar outro, era doctor de não sei das quantas, fazia mais falta a ela.
No meio da confusão, ela tira o isqueiro do bolso e acende-o. Aconteceu tudo tão rápido, os cabelos da miúda pegaram fogo. Ouviu-se gritos.  Ela correu rua fora em cima dos sapatos de salto, tentou tirá-los em vão, escondeu-se numa esquina com o coração aos saltos. “Que fiz eu?”
O isqueiro esquecido no chão recorda o dia que de cabeça baixa e coração perdido a infância desvaneceu e, no meio das mulheres, ela é uma menina que brinca no escuro com as bonecas e sonha ser bailarina, afinal, só queria ser amada.

[AUTOR CONVIDADO] CARLA DUARTE nasceu no dia 4 de Março de 1982, na cidade de Faro, a capital do Algarve, em Portugal. Deram-lhe o nome de Carla Duarte, de momento vivo em Lagos numa bonita cidade costeira. Sempre que a disposição aparece, escreve contos, desenha e pinta quadros a óleo. Dá longos passeios pela costa que lhe inspira e traz-lhe paz interior.

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