H.A.D.E.S.


O Julgamento de Cambises por Gerard David


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Sou informado. Leio muito. Um homem culto e bem educado. Aparentemente ninguém sabia da minha doença. Convivi anos com os mais diferentes tipos de pessoas, mas nunca deram a mínima. Nos poucos momentos que ousávamos conversar sobre o maldito, o máximo que eu ouvia era um “Hunf, que bobagem” e uma brusca desviada no rumo da conversa.
Sempre ouvi falar que existiam pessoas que nem eu. Mas, pra começar, tinha vergonha de assumir ou até mesmo mencionar o assunto. É difícil assumir pra si mesmo um mal que, à vista dos outros, parece inexistente. Mas existe. Dói. Machuca. Corrói. Sangra.
Uma hora isso iria me machucar de verdade. Foi ai que encontrei o H.A.D.E.S.
Saindo do clichê chuvoso do carro desgovernado na pista molhada, aconteceu de manhã mesmo. Depois da não-sei-mais-qual briga e uma ameaça de não voltar mais, decidi tomar um rumo: andar sem rumo nenhum. É assim que eu consigo me acalmar quando o maldito me ataca de súbito.
Em cidade grande a gente tem que admitir que nunca aprende todos os caminhos. Entrei em uma rua que jamais tinha visto na vida. Árvores altas, frondosas, cobrindo a rua de um lado a outro. Conseguia ouvir os pneus do Corolla prata triturarem as folhas amareladas do chão. Uma grande bolha que parecia desabitada em plena agitação da urbanização. Absolutamente nenhum carro, nem indo, nem voltando, nem parado, nem andando. Absolutamente nada.
Surreal demais, eu sei. Tenho que admitir que tive medo. Mas não aquele medo racional de bandidos e seqüestros, típicos dos telejornais. O que senti foi algo maior. Algo irracional. Como se o carro se transportasse sozinho para onde eu deveria ir.
Aos meus pouco mais de 20 km/h, encontrei um grande portão prateado, meio enferrujado, com as trepadeiras se apossando da maior parte de sua extensão. Parei o carro. Tudo aconteceu em uma sucessão difícil de explicar. Só sei que, depois do transe inicial, entrei portão adentro, por uma pista que parecia interminável. Ao final dela, uma grande garagem. Cerca de 12 carros enfileirados, dos mais diversos tipos. Estacionei ao lado de um “Novo Uno” azul e desci.
Pasmo com a grandiosidade do local e seu silêncio sepulcral, somente perturbado pelo farfalhar das árvores, não o percebi se aproximando.
- Boa tarde, Bosco – e sabia meu nome – Nós estávamos à sua espera – falou educadamente, como um lorde inglês, guiando-me pelo braço até o hall de entrada.
Simplesmente não consegui formar frase alguma sobre como aquela criatura trajada impecavelmente sabia meu nome. E como ele estaria à minha espera? Já me conhecia? Não consegui elaborar minhas próprias respostas. Fui levado a uma grande porta. Parei. Criei forças para perguntar:
- Devo? – falei em um sussurro, apontado à porta.
- Deve. Já te esperam.
Entrei.
Um círculo. 13 homens. O primeiro deles em uma cadeira de espaldar mais alto que os demais. Ele liderava a reunião.
- Olá Bosco. Bem-vindo ao H.A.D.E.S.
Sem saber o que responder, caminhei até a cadeira que, providenciosamente, aguardava também a minha presença. Daí que a voz de trovão começou a falar. Incrivelmente sensível.
- Podemos começar o nosso encontro como de praxe. Quero que vocês comentem o progresso que fizeram nessa semana. Voluntariamente, claro. Mas não imagino que alguém ainda sinta vergonha. Se estamos todos aqui, é porque somos iguais. É porque sofremos e choramos da mesma forma. É porque já chegamos ao fundo do poço e não agüentamos mais. Sintam-se livres.
A voz do grande homem retumbava nos meus ouvidos. Parecia que estava falando direto pra mim. Era como um calmante para a minha chaga mais dolorida.
Foi ai que um senhor, beirando os seus 40 anos, começou a falar. Tremulamente.
- Olá pessoal – falou, relutante – Nesta semana aconteceu algo complicado. Algo que testou os limites do meu maldito pessoal – ele falou maldito? Foi isso mesmo que eu tinha escutado? – Nesta semana, tive que cumprir hora extra no trabalho. Liguei para Lúcia avisando. Ela disse que tudo bem, que ficasse despreocupado. No meio do serviço resolvo chamá-la novamente, só para escutar sua voz. Sabem quando a atmosfera na qual a pessoa está falando ao celular é diferente? Perguntei onde ela estava e a pu... perdão. E ela respondeu que estava na casa de um amigo.
O senhor apertava os braços da sua poltrona com uma força que deixava branca a ponta dos seus dedos. As pessoas olhavam com um olhar caridoso. Como se quisessem envolvê-lo, abraçá-lo.
- Fiz a coisa mais irracional que eu poderia ter feito, claro, dominado pelo meu maldito. Gritei. Mandei, utilizando todo o meu vocabulário de baixo calão possível, ela voltar imediatamente pra casa, fingindo não escutar todo e qualquer protesto e justificativa. Desliguei o telefone e não atendi mais. Quando recuperei a calma, liguei. Ela estava a pé, pois eu estava com o carro, em uma rua bastante perigosa, dizendo que ia tomar um táxi para voltar pra casa. Ai eu desliguei o telefone.
Respirou fundo para continuar a falar.
- Quando cheguei em casa, 22h, ela já estava dormindo. Ou pelo menos fingindo. Cobri-a melhor, dei um beijo em seu rosto e fui dormir na sala. Fiquei feliz. Feliz porque, pela primeira vez em muito tempo, não senti vontade de esganá-la ou sufocá-la com um travesseiro. Também não liguei ameaçando o amigo dela. Ela percebeu tudo isso. No outro dia fez um belíssimo café da manhã para mim e me deu um grande beijo, dizendo o quanto estava feliz pelo meu avanço.
Uma salva de palmas, quase alta demais para os meus ouvidos, impulsionada pelo eco da sala, ressoou. Quando tudo se acalmou, a grande voz falou novamente.
- Bosco – todos os olhares dos presentes se voltaram pra mim - Bem-vindo ao H.A.D.E.S., Homens que Amam Demais Sofrem E – Conte-nos seu problema.
- Olá. Meu nome é Bosco. Tudo começou quando...        

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H.A.D.E.S. de Davi Moura é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com. Permissions beyond the scope of this license may be available at www.blogadorocomer.blogspot.com.

Comentários

  1. Mistérios, mistérios, uma trama bem costurada com uma abertura geral para as interpretações. Será influência norteamericana?

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  2. Gostei de mais Davi, suas crônicas estão cada vez melhores! instigante e, no início, o ar de mistério nos leva a devorar o texto de um fôlego só!
    Parabéns!

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  3. Muito engenhoso esse menino! Surpreendente, como sempre. Gosto mto. Mto mesmo dessa sua coragem em inaugurar linguagens. Feliz por le-lo!
    Grande beijo
    Prima ASS
    lete

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