Maria e Rituska


Ernst Ludwig Kirchner (1880-1938), Marcella, 1909-10



Secretária

Maria dizia sempre que “não acreditava mais em uma porção de coisas nas quais já acreditou um dia.” Ainda iria patentear esta frase.
Umas porções de suas crenças ruíram pela estrada da vida causando dor e decepção.
Mas Maria sabia que a decepção ensina muito. Sempre.
Ela sabia que no fim da história o que realmente vale é seguir acreditando em uma porção de outras coisas.

Maria era de uma geração cujos ídolos das adolescentes eram os “Menudos”.
Ela, entretanto, não via a menor graça neles. Na parede do quarto pobre, colocava fotos e mais fotos do Maluco Beleza, Raul Seixas.
As amiguinhas ficavam horrorizadas diante daquele homem barbudo, magrelo, descabelado e (aos olhos das amigas) feio.
Aos olhos de Maria Raul era lindo.
As idéias dele cutucavam seu cérebro e as músicas menos conhecidas eram as que ela mais gostava.
“Canto para minha morte”, bem conhecida e feita em parceria, levava Maria ao delírio, fascinando-a por contar das verdades que desconfiava desde os bem poucos anos.
A certeza de que pode ser uma metamorfose ambulante persegue Maria até hoje.
Não tem o menor problema em mudar de idéia.
Muda de cabelo.
Muda de estilo de roupa.
E muda de vida se for preciso. Todas, quantas vezes for necessário.
Maria nunca teve receio de “desdizer o que já disse ontem” e pagar o preço pela mudança.

Ela acredita piamente que “todo homem nasce livre.”
Nunca abriu mão deste ideal mesmo quando andou por outras caminhadas.
Alguns conceitos resistiram a todas as decepções e Maria ainda os carrega em sua alma, uma alma velha e cansada de guerra.
Os conceitos foram ficando sólidos dentro dela, enraizados em sua alma, grudados em seu peito. Passaram a escorrer junto com seu suor, dar cor aos seus cabelos e fazerem parte do que Maria se tornou.

Uma das mais importantes crenças que Maria nunca abandona é na importância de ter amigos.
Acredita que amigos devem vir e ir sem culpas ou cobranças e que bem poucos são para a vida toda.
Isto não significa que não tenham sido bons amigos.
Amigos, quando são eternos, não são como plantinhas frágeis que precisam ser regadas todo o tempo sob o perigo de morrer.
Amigos eternos são com árvores velhas de troncos bem grossos.
Depois que criam raízes no solo da vida, passam por invernos terríveis e verões medonhos sem se abalar.

Maria conheceu Maria Rita na esfera virtual.
Chama-a de irmã por puro abuso, pois na realidade Maria sabe bem pouco sobre Maria Rita.
Vivem rotinas diversas em cidades diversas de um mesmo Estado.
Foi aos 32 anos, em um encontro marcado com ela, que Maria viu pela primeira vez um show de um poeta de quem era fã desde a mais tenra meninice, tão logo Raul deixou-a órfã. O Show era do compositor, poeta e cantor Zé Geraldo.
Daí pra frente “viagens e versos” cuidaram de aproximá-las.
Partilhando músicas, versos e estradas elas solidificaram aos poucos a amizade.

Há algumas noites Maria surtou.
A vida pesada pesou em sua alma e ela jurou que não acreditava em mais nada.
Gemeu e chorou. O peito ardeu e, no meio do choro, ela percebeu que não queria mais seguir adiante.
Não havia mais nada para crer.
Sem crer não podia viver.
Maria se esqueceu dos amigos e de sua força invisível.
Era uma das poucas coisas na quais ela ainda acreditava.
Mas no meio da noite fria se esqueceu.
Foi o marido de Maria que ao tentar acalmá-la cuidou de lhe restaurar a fé.

Nos braços dele que em vão tentava consolar-lhe das decepções da vida ela falou baixinho:
- Eu preciso pensar em algo bom.
Ele respondeu docemente:
- Pensa na Ritinha.
No silêncio da casa, na noite de insônia, o riso de Maria, quase um soluço, foi ouvido:
- Na Rita? Na Rituska?
O marido de pronto respondeu:
- Sim, ela sempre faz bem a quem está perto dela.
Maria Rita tem em sua quietude e em seu aparente individualismo um autoconhecimento que transpira respeito por si e daí, e só ai, pelos outros.

Rituska.
Maria Rita.
Naquela noite insone, foi este o Nome Santo que fez Maria parar de chorar.
A força dos amigos é importante quanto o sol, já dizia o poeta.

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Comentários

  1. Seu texto faz a gente caminhar levemente através da narrativa breve e da descrição. Um resgate dos ídolos, dos valores e da amizade. Só fiquei me achando um tiquinho pq eu era uma das fãs dos 'Menudos", ai Jesus, me perdoe!
    Frase marcante pra mim: "Amigos eternos são com árvores velhas de troncos bem grossos."
    Lindo!

    Abração querida!
    Regiane

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  2. A referencia musical neste texto me fez pensar o qto musica e litertura podem caminhar juntas. Mto terno, como sempre, né, Klas? Qdo vc escreve tem o dom de amansar as dores...Parabéns
    bj grande
    Prima ASS
    lete

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  3. Adorei! Parabéns!
    Eu que conheço um pouco desta história me emocionei!

    Beijão,
    Nádia

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