O demônio das ruas

Estudo da mendiga - Almeida Junior  - 1899

Cronista

Rastejando sobre escama das ruas, sob as sombras dos prédios que brotam do chão, uma nesga de gente com sotaque azul afasta a cidade de seus guardiões.

Com licença, você pode me ajudar...?

Não é um diálogo, é só um sopro do resto do clamor que ainda lhe resta. O olhar moribundo revela a única expressão que sobrou do seu arcabouço. Sua voz roufenha alude um solilóquio indecifrável. Já não há mais contato e toda atenção recebida é o desprezo de uma moeda pequena. Um sinal para manter a distância.
Não é pelo veneno que carrega nas veias e faz suicidar os desvairados, é pela semelhança.
Zumbi – demônio das ruas que atarraca os mortais com sua súplica fatigante e intermitente: Com licença, você pode me ajudar...?
Seus olhos têm espelhos que afastam outros rostos e sua boca vazia a cadência dos famintos. Está em todo lugar e é chave para a necessidade aterradora do peito humano de definir o outro, estereotipá-lo, como se isso trouxesse alívio aos pecados.
Detestamos o semelhante para suportar-nos.
Um rosto diáfano que esmola entre os pés já não é rosto, é reflexo daquilo que se apresenta quando se está só. Sem dignidade, não é mais homem. Por não servir à cama, já não é mais mulher. É uma folha marcada. Livro de única página – narrativa fechada. Momento de encontro na escuridão vaga das noites caídas, onde se revela a carcaça despida dos próprios julgamentos. Um tanto de si, preso num cubo que devolve ao centro tudo o que for lançado.
Seu maior castigo é estar entre os vivos, ainda que feito uma luva rasgada e jogada ao chão, ante a sala da maldade das pessoas boas. Os mesmos que passeiam na praça expondo os anéis quando só os anéis interessam.
Já nasceu velha no seio de pedra, resmungando o silêncio das indagações.
Dorme nos cobertores das praças, escondida nos recantos dos dormentes construídos com a luz de seu sofrimento e espaça-se ao fulgor do sol escapando dos donos da rua que precisam do espaço para colocar as latas de lixo.

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O demônio das ruas de José de Paiva Rebouças é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported.Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com.
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Comentários

  1. “Sou emotiva e freqüentemente vou ás lágrimas.Seja por alegria ou tristeza.

    Mas existe um tipo de choro que é da alma.
    Que é de olhar o outro e se ver nele e sentir uma dor aguda no peito que não se explica e só entende quem sente.

    Chorei este choro ao ler este texto Jota.
    Se você estivesse ao meu lado ontem na praça Don José Gaspar (Praça da Biblioteca Municipal da Capital – SP) não teria descrito com maior perfeição o que sê vê por ali.
    Lamento imensamente os deuses da Literatura não me abençoarem como fizeram a você.

    Cada palmo deste texto tem um grito que eu identifico e que fica entalado em minha garganta.
    Você dá voz a este grito.

    Parabéns.
    Xeros sudestinos, meu amigo, meu compadre meu irmão.

    Klas, Maria Bonita”

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  2. Todos nós vemos estes "demônios" com frequência. E dói. Noutros nem tanto. Outros, poucos - diga-se de passagem-, conseguem (de maneira fabulosa!) fotografar com palavras o que não cabe no olhar. Realista. Retrato de gente que luta para ser gente. O percurso traçado pela dinâmica descritiva revela a profundidade da trágica condição de muitos. Personagem que nos rodeia e nos indigna. Ótimo texto, ótima observação. Um tapa na cara da gente que se esconde e se assusta diante dos pequenos demônios...
    bjs.....
    marida.

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  3. Jotta,
    A escolha lexical foi a grande sacada desse texto, q traz um retrato ultra-realista da nossa indiferença, da nossa falta de humanidade, da nossa falta de ser...
    Estonteante. Como sempre.
    um xero
    Prima ASS
    lete

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  4. Retrato cru e dolorido da realidade. Uma escarrada na nossa cara limpa e cheirosa a sabonetes e noites bem dormidas. Texto primoroso por nos fazer ter reações, seja asco ou pena, mas toca no íntimo. E nisso você é rei! Parabéns!

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