O nariz de Luís e a barba do cabra


Cabeça de pedra de homem com barba do Palácio Al-Hir Al-Gharbi


Recentemente, em um curso de capacitação, me vi diante de um debate um tanto polêmico, pelo menos para mim. Um daqueles assuntos sobre os quais não se chega a um denominador comum, como futebol, política ou religião. De repente, durante uma aula do curso de relações interpessoais ofertado pela instituição onde trabalho, o professor abordou o aspecto “aparência” como fundamentalmente importante para uma boa relação e uma comunicação eficiente no ambiente de trabalho. Impecável nos trajes e no penteado, ele foi categórico no conceito e deu exemplos de como a “má aparência” pode influenciar negativamente nos objetivos profissionais. Eu, que estava razoavelmente barbeado, cabelo mais ou menos e a roupa até que não estava das mais amassadas, acompanhei, a contragosto, os meus colegas que nem ensaiaram uma discussão, quiçá uma contradição em defesa dos menos preocupados com a aparência.
Pensei que tinha fugido de uma exposição do tipo, mas eis que a tentação ressurge. O professor relembra de um caso verídico (típico dos professores) em que a aparência fez a diferença em uma dada situação da vida profissional dele próprio. Eu então não resisti e sugeri, temeroso de que pensassem que eu legislava em causa própria, que tal preocupação é amiúde exagerada. O resultado foi uma longa e desequilibrada discussão. O fato é que o assunto me lembrou uma situação, no mínimo engraçada, pela qual passei na qualidade de professor.
Por causa do meu gosto em usar barba comprida desde os primeiros anos da adolescência, ganhei vários apelidos, dos quais gostava, na maioria das vezes. Esse meu hábito me rendeu, inclusive, um apelido da minha sogra. Logo que apareci, barbudo e largado, como namorado de sua filha querida, ela começou a me chamar carinhosamente (como é comum para essas parentas) de “o cabra”. “O cabra já chegou?” “Está na hora de ‘o cabra’ ir!” Meus alunos também gostavam de interferir na minha aparência. Eu costumava dizer que eu tinha tantos personal stylists quantos conhecidos eu tivesse. E os alunos... ah... esses eram sempre bem específicos.
Era assim... Eu começava a evitar as lâminas e, no início, nada. Uns dias e as primeiras perguntas: “Deixando a barba crescer, professor?” E eu descontraía: “Eu não deixo; ela é que cresce de atrevida...” Depois eram os comentários: “Barba grande, professor!” Daí em diante eu evitava responder ou comentar, pois não adiantava. Chegava ao ponto deles me insultarem sem que eu lhes desse motivos: “Que barba feia, professor! Coisa horrível!” Garanto que havia professores muito mais feios que eu e que eles, os alunos, principalmente as alunas, em nome do bom senso e da privacidade alheia, nem se aventuravam a fazer qualquer comentário. Claro! O problema era a barba! Eu poderia usar a roupa mais ridícula, mas a barba era mais feia...
Certas vezes, em algumas turmas de adolescentes, tentei argumentar de forma racional, despertar idéias diferentes do imediatismo que lhes fazia prezar tanto pela aparência. Comecei a comentar sobre o texto “O nariz” de Luís Fernando Verísssimo. Resumi a estória do dentista renomado, bem resolvido e bem sucedido sob todos os aspectos que certo dia resolve aparecer para trabalhar com um nariz postiço, daqueles que acompanha óculos de plástico com bigode e sobrancelhas pretas. O que parecia uma brincadeira inesperada de alguém tão sério se estende ao ponto de prejudicar todas as suas relações, profissionais, familiares e amigos se afastaram definitivamente diante da insistência em usar o nariz.
Por fim, depois de perder contato com os familiares e todos do seu ciclo de amizade e colegas de trabalho, ele é levado por alguns últimos amigos que tentavam resgatar sua reputação a consultar um psiquiatra que, por sua vez, depois de concluir que ele não tinha quaisquer problemas de ordem psíquica, tenta convencê-lo de que seu comportamento é um tanto estranho. Ele argumenta dizendo que o comportamento estranho não é o dele e sim o das outras pessoas que, por causa de um simples nariz postiço, desacreditara-o e abandonara-o. Nesse momento, ajudado pelo enredo da estória, eu percebia que tinha a atenção de todos e imaginava que poderia lembrar daquele momento para sempre. Achava eu que ouviria vários comentários positivos sobre a reflexão e que eles até repensariam o julgamento que, baseados na aparência, fazem ou fizeram de algumas pessoas.
Então eu olhava para eles e perguntava: “Pessoal, será que a aparência, apesar de importante, deveria ter tanta influência nas relações entre as pessoas? Será que um nariz postiço, por exemplo, ou mesmo um tanto de cabelos justifica termos que para nossa aula?” Assim que eu me calava, tinha sempre um que dizia: “Mas... e aí, professor? Vai ou não vai tirar a barba?”

[AUTOR CONVIDADO] Anibal Mascarenhas-Filho é Tradutor e Intérprete de L. Inglesa da Universidade Federal, Rural do Semi-Árido (UFERSA) e escritor. anibalmascarenhas-filho.blogspot.com

Comentários

  1. Seu maravilhoso texto me fez lembrar duas situações. Acho muito bonito o tal do cavanhaque, mas meu marido nunca mais deixou sua barba neste estilo por causa dos colegas de trabalho que ficam sempre tirando onda diante do modelo. Ainda que eu repita várias vezes que gosto, não tem jeito, para evitar as chacotas, ele prefere deixar o queixo lisinho, apesar de gostar dele assim tb, rsrsrsrs.

    Sobre o nariz, o espanhol Quevedo também fez referência a ele:

    "Érase un hombre a una nariz pegado.
    Érase una nariz superlativa.
    Érase una alquitara medio viva.
    Érase un peje espada mal barbado.Era un reloj de sol mal encarado.
    Érase un elefante boca arriba.
    Érase una nariz sayón y escriba.
    Un Ovidio Nasón mal narigado.Érase el espolón de una galera.
    Érase una pirámide de Egito.
    Los doce tribus de narices era".

    Fecho meu comentário fazendo jus a sua frase:
    "Pessoal, será que a aparência, apesar de importante, deveria ter tanta influência nas relações entre as pessoas? "

    Abraços!

    Regiane de Paiva

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  2. Uma vez o Jotta me disse que achava minha barba meio a la Cortázar. Eu prefiro o cavernoso lá da gravura, pois, já que não tenho o brilhantismo do poeta e seus versos, tenho ao menos a aparência assustadora para fazer frente à maioria determinista. Mas, acima de tudo, uso-a porque gosto.
    Regiane, os versos do Quevedo são bem representativos disso mesmo. Não sei como, mas lembrei d'A Pata da Gazela (coisa minha!). Vou posta-los no meu blog.
    Abraço!

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