Papéis de cor


Pintura em papel manchado - Mel Kadel


Professora

Acharam até que nem vingaria de tão magra que era a pobrezinha. Parecia ter bem menos idade do que aparentava ter. Fragilzinha, corpo fino, mãos pequenas, morena clara com longos cabelos castanhos, caídos e leves.
Aos 13, apaixonou-se pela primeira vez. O rapazinho da mesma idade morava a um quarteirão de sua casa. Todas as tardes, espreitava pela janela da sala para ver quando ele passasse para o futebol. Não era bonito nem nada. Tinha a cara branca e coberta de espinhas. Ainda assim, lhe encantava a alvura de seu rosto. Numa noite, ele a beijou quando estavam na calçada de uma amiga dela. Beijo melado, alvoroçado, desastroso. Antes que seu pai aparecesse gritando que já passava das 8 da noite, ela o empurrou e correu depressa para casa. Escondeu-se e cuspiu. Cuspiu repetidas vezes. Passou a noite enjoando o gosto dele. Sentiu nojo, raiva, arrependimento. Pensava que aquele momento deveria ser inesquecível, mas por sorte, não foi. Esqueceu logo do gesto insosso e de seu autor.
Aos 14, o sangue não lhe havia descido, muito menos os seios criavam volume. Inconformada, ficava horas de frente ao espelho. Passava a mão no peito como se quisesse arrancar algum vestígio de carne, um tiquinho que fosse para se sentir crescida. A tia pensou até em levá-la ao médico: teria algum retardo biológico. Mas antes dos 16, finalmente chegou. Vermelho e denso, manchando a calça, para sua alegria e cruz. Mesmo assim continuava miudinha, a menor da rua. Sem encanto, sem brilho, sem nada que a fizesse vistosa.
Nunca fora namoradeira, a diferenciar-se das primas que, aos 17, já tinham seus parceiros. Talvez, por isso, parecesse tão estranha aos olhos dos seus. Gostava mesmo era de enfiar a cara nos livros. Trocava qualquer convite pelos livros. Fora isso, visitava as avós, e só. O resto da parentada era um fluxo contínuo de prolixidade, o que a conduzia a uma profunda introspecção. Fugia!
Amigas, tinha poucas. De preferência as que falavam menos e se concentravam mais. De resto, preferia mesmo os papéis de carta. Nesta época, era uma prática muito comum entre as adolescentes.  Eram lindos... com desenhos, cores, cheiros. Deixava sempre uns trocados para garantir as últimas novidades. Exibi-los na escola, era o seu momento. Todos arrumadinhos dentro de uma pasta roxa. Mais que papéis, eram seu campo profundo e o vazio para o seu grito. Quando se via encurralada dentro de si, abria a pasta e escolhia um deles. Certificava-se da imagem, das cores; cheirava-o... Confessaria nele toda a sua impotência e seu desejo de ser outra que não fosse ela mesma. Tinha muito medo que alguém os encontrasse depois de haver declarado as suas sombras de pó. Sufocada por todos os períodos desabafo-escritos, tomou os papéis de carta entre as mãos e os amassou um a um, empurrando-os dentro da boca. Mastigou-os com ferocidade e foi sentindo o sabor de cada palavra escrita, de cada vírgula e de cada ponto. Deixou apenas as reticências presas entre os dentes. Engoliu todos os papéis demoradamente enquanto se deitava. Durante a madrugada cortante, sonhou com todas as cartas por devorar e vomitou os parágrafos não escritos, deixados no canto das bordas de uma das folhas coloridas de solidão...

 Licença Creative Commons
Papéis de cor de Regiane Santos Cabral de Paiva é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com.

Comentários

  1. Na minha opinião foi o melhor dentre os outros escritos, perfeito!!!

    ResponderExcluir
  2. “Regiane, este seu texto fala de meu tempo, fala minha língua.
    Fala com a alma das meninas, e das mullheres que lembram como foi...
    Como sempre, nossa Regiane, assim como as demais aspirinas e urubus, nos leva, com as palavras, ao universo que somente a arte pode conduzir:
    o universo de quem sente, pensando, ou pensa, sentindo...enfim. Parabéns.
    Eu também colecionava papeis de carta...
    Beijos, Eliana Klas”

    ResponderExcluir
  3. O texto é simplesmente
    maravilhoso, dentre os
    que li, é um dos melhores.
    Isso só poderia ser da
    minha querida Regiane..
    Bjs.. Saudades Profer
    Luana Monteiro..

    ResponderExcluir
  4. Pápeis de carta...estes fizeram parte da minha infância/adolescência. Que tempo aquele!! Texto de uma sensibilidade única, com a propriedade de quem já viveu uma época tão pura como aquela.
    Perfeito!!!

    ResponderExcluir
  5. Cara Regiane,

    eu com os poderes a mim auferidos pelo além, te batizo. Tu és contista agora. Pode continuar sem medo. De preferência cause surpresa assim, como neste conto. Amém!


    Carlos Gildemar Pontes

    ResponderExcluir
  6. Entregue-se a esta arte, sem receios e sem reservas, pois dessa fonte muitas águas ainda vão jorrar

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

HOMEM DE PALHA [Ensaio sobre o palhaço]

Minha amada bruxa

O mimo que ele não trouxe