Não fale sobre a França!


Kamicaro - Egil Paulsen


Professora

Há alguns dias, fui pega de surpresa. Talvez, a exceção de meu marido, ninguém tinha sido tão franco comigo. É certo que, quando adultos, nos entregamos ao fingimento e mascaramos o real com uma suposta cortesia. Isso ocorre porque ser sincero demais pode resultar em constrangimento. Melhor rir amarelo e fingir que está tudo bem.

O caso foi que, o danado que me fez calar tem apenas 7 anos de idade. De início, confesso, fiquei meio sem graça, mas não chegou a despertar em mim um sentimento de indignação, nem a resposta dele me levou a pensar que estaria sendo mal educado. Pelo contrário. Fiquei recolhida no meu silêncio, envergonhada, mas, ao mesmo tempo, maravilhada pela inocência e transparência com que ele manifestou a sua vontade. De verdade.

Ele havia passado em torno de 5 meses na França com os seus pais devido aos estudos de pós-doutorado que ambos se submeteram. Quando retornaram, o assunto não poderia ser outro. Torre Eiffel, Museu do Louvre, Arco do Triunfo, Champs-Élysées, Catedral de Notre-Dame, Museu de Belas Artes em Nantes, Museu de Arte Contemporânea em Nice e por aí vai. Como ainda não tinha visto o garoto, quando fui encontrar sua mãe para discutirmos sobre minha dissertação (Salve mestre!), a primeira coisa que me ocorreu indagá-lo foi: E aí rapaz, como foi lá na França?

... Falou-me com cara de decepção diante da minha falta de originalidade:

__ AI NÃO, para de falar isso, eu não aguento mais esse assunto!

Decepcionado, foi assim que ele ficou. Por que não lhe perguntei sobre o curso de pintura que fizera lá? Por que não fui mais pontual ao tentar abrir um diálogo com o garoto?

Silêncio nos primeiros segundos. Meu marido assobiou e olhou para o lado como se não tivesse ouvido nada. A mãe dele riu meio sem jeito. Eu concordei- imediatamente – ratificando, inclusive, que ele deveria estar muito aborrecido com os extensos interrogatórios sobre o país desde que haviam chegado.

Durante o resto da noite, fiquei pensando nas tantas vezes que eu quis dizer: por favor, não gostaria de falar sobre o assunto. Ou, ‘ não tenho interesse a respeito disso ou daquilo’. Quem sabe: ‘olha, você já me falou disso antes. Aliás, todas as vezes que nos vemos’. ‘Não, não posso!’. Que nada! Os adultos perderam a noção da sinceridade. Inventamos uma situação agradável quando tudo que queríamos fazer era fugir dela. Pior, fiquei pensando nas vezes que me esforcei para não ser indelicada e me submeti à vontade alheia. Mas naquela noite, aquele menino, com cara de pequeno príncipe, me fez sentir vontade de ser livre e de ser inteira em tudo que penso e sinto. Não que eu tenha me rendido à falsidade, mas, algumas poucas vezes, agi com cordialidade em detrimento do meu desejo.

Júnior me tocou aquela noite. Sua pureza jamais saberá o quanto me havia dito com uma só frase sincera e lúcida. Felizmente, ainda é permitido à criança este tipo de liberdade, já que, se um adulto o fizesse, seria tachado de, no mínimo, ignorante! A criança, por sua vez, tem esse poder de ser o que se é sem máscaras ou disfarces. Aos adultos, não lhes é permitido tamanha atitude de honestidade. Para ser sincera, os receptores é que não estão preparados para receber a verdade.

“Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança, desde que me tornei homem, eliminei as coisas de crianças”. Isso significa que vamos nos afastando do que somos na essência... Melhor eu visitá-lo outras vezes para ele me ensinar fazer resgatar a criança que matei dentro de mim quando fui crescendo.



Comentários

  1. Só quem convive com crianças consegue perceber esse mundinho das sacadas geniais e respostas verdadeiras. Cá entre nós, minha dose já está saturada! O texto nos prende pela simplicidade do que levou Regiane a construi-lo. Além de nos deixar curioso a cada linha pra saber quem cometeu tamanho infortúnio. Adorei!

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  2. Eu tenho dois espelhos da verdade em minha casa. Sempre me dizem q sou a mais bela de todas e de algum modo pra eles devo ser. Mas tb me arrebentam com as verdades q conseguem perceber. A grande sacada é nunca deixar de ouvir os nossos velhos e a nossas crianças...Eles tem um olhar privilegiado.
    Como sempre feliz em te ler....
    Um grande abraço
    Lete
    Prima ASS

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  3. eu li o texto a achei ótimo e engraçado, mas nunca pensei que você fosse escrever sobre o encontro. Adorei a parte em que seu marido ficou assobiando, mais ainda repito nao fale comigo sobre a frança.

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  4. Essa resposta de Gilton júnior, personagem central da crônica, revela a importância do texto que alcança o seu espectador. Acho que a Regiane caminha bem por esse gênero e vai ainda melhor quando encontra o tema certo para trilhar... muito bom.

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  5. “Reina, seu texto muito mais do que atingir o pequeno leitor, personagem central do texto, atingiu a boca do meu estomâgo.
    Eu acredito em coisas que não se vem.
    Boa parte dos leitores quando lêem também buscam que o universo fale com eles através do escritor.

    Seu texto atingiu a boca do meu estomago primeiro pela semelhança com o que será postado na quinta e do qual você não tem conhecimento (nem eu tinha do seu), segundo por falar diretamente a mim e a uma determinada situação que anda matando meu ser.

    Catzo, se Deus, Alá, Senhor, Cara lá de cima, ou como quer que vocês queiram chamar o Criador, um dia deixou seus manuscritos como ensinamento, como não acreditar nos poderes curadores de quem tem o dom da palavra?????
    Somos Aspirinas, e somos urubus.
    Viemos para liberar este mundo do que está podre e curar as dores da alma.

    Podre é todo hipócrita.
    Seu texto nos lembra que ser hipócrita passou a ser confundido com educação.
    Beijos.”
    Klas

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  6. A criança traz consigo a sinceridade, a pureza e a liberdade (Eu que o digo, minhas duas pérolas, movem, removem e reconfiguram o meu mundo). Você, Regiane, como elas é sincera, cativante e lidar muito bem com os elos formadores das verdades mais incógnita. Então, este encontro foi perfeito! Sensacional!

    Luzinete

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  7. "Regiane, não sei, sequer, comentar lá no espaço reservado e próprio para os comentários. Mas isto que escrevestes, pode ter certeza, é o meu retrato. Não sei dizer um não. Talvez o meu maior defeito, pois sou um condutor de defeitos que me fazem ser diferente para encobri-los. Agora, sinceridade de criança é algo que fascina, encanta e nos remete a reflexões que nos fazem bem. O que impressiona é a técnica com que fotografas através do texto um episódio que produz efeitos, que não é estéril, mesmo tendo como protagonistas uma criança de sete anos. Mais uma vez, repito, parabéns.

    William L. Guerra

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  8. Li sua crônica "NÃO FALE SOBRE FRANÇA", escrita com base em diálogo travado com Gilton Júnior, e fiquei pensando em como nós perdemos a infância ao longo do tempo. Seu texto está fluente e nos traz à mente muitas outras ações das crianças que deixamos passar, sem dar a devida atenção. Como pai de Gilton Júnior, também fiquei orgulhoso (rs rs rs) por ver que uma conversa entre ele e você possibilitou esse a produção desse agradável e tocante texto. Parabéns a você também pela sensibilidade demonstrada em ouvi-lo em sua essência, além dos limites das frases, e vamos em frente, ouvindo mais as crianças e "deixando a vida nos levar", com menos obrigação de seguir todas as civilidades, ou pelo menos as civilidades extremas, que nos tiram da prórpia vida.
    Abraços,
    Gilton Sampaio

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  9. Saudações professora, belo texto,pois somente a esses pequenos anjos é permitido essa sinceridade sem disfarce.Lúcia Marqeus

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  10. Parabéns,

    Ficamos adultos e perdemos o que temos de mais verdadeiro e que parece que só é refletido na alma de uma criança. Você amiga pode ser considerada como pura, verdadeira em conseguir captar, enxergar e principalmente, reconhecer o quanto vamos nos descaracterizando durante o que normalmente e rotineiramente chamamos de amadurecimento.

    Belo texto!

    Vera Porto

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