Azul
Chá da madrugada - Daene Pino |
Professora
Não o escolhera à toa. Há dias abria o armário e espiava o brilho daquele azul. Nem lembrava quando o havia comprado, mas sabia que deveria exibi-lo. Para ele. Deixaria os cabelos presos para que as costas ficassem à amostra. Melhor deixá-las em evidência. Como já fazia mais de um mês que não se viam, decidiu brindar o reencontro com ceda e vinho...
Naquela manhã, recebera a mensagem que ele chegaria ao cair da noite. E quando ele vinha, ela sabia que poderia germinar e sorrir como quando criança, antes de sentir o colo amargo do pai. Vê-lo, representava colher uma aurora que perdera quando deixara a cidadezinha dos sem fim. Afinal, ele fazia parte dos sonhos construídos sobre os pirulitos arco-íris...
Maldizia a perda dos dois, mas sabia que reencontrá-lo, de quando em quando, era fazer um recorte na tela negra que ela alinhavava todas as manhãs. E foi numa de suas noites fugidias que ele a encontrou rodopiando nos braços de um destino infame. Acolheu-a e lhe deu luz. Sombra! Não aquela que escurece o dia, mas a que alivia o corpo depois de horas sob o sol forte. Depois do riso, das lágrimas e das lembranças que trouxeram de quando se embrenhavam entre as plantações de milho, repousaram...
...
Olhou-se diante do espelho mais uma vez. Certificou-se de que o vestido não tinha nenhuma prega. Solto sobre seus contornos. Olhando-a assim, parecia não trazer na pele a mácula de uma sina indesejada. Voltou a ajeitar mais uma vez o cabelo e viu-se numa sensualidade ingênua, traço que ele desenhava desde que voltaram a ver-se. Achou-se linda naquele instante e esqueceu-se de quem era... Melhor não lembrar e postar-se à janela, tendo o coração nos pulsos e uma ansiedade a correr nas veias.
O amava desde a infância, mas quando o pai a abusou depois de saber dos encontros secretos que tinham, fugiu, arrastando consigo um embrulho de manchas roxas. Escorregou numa cidade sem teto e lá, encontrou colegas que a levaram aos corredores estreitos, cortados por leitos de colchas retalhadas. Ali, estava longe dos olhos do verdugo.
...
Reconhecia aquele chapéu e aquele andar. Era ele, finalmente! Correu à porta. Deslizou pelas escadas para encontrá-lo antes que ele subisse. Quando chegou ao portão do edifício mofado, não teve tempo de avisá-lo. O homem de barba, o mesmo que lhe arranhara a pele quando inocente, disparou contra o moço de terno que a olhava. As flores caíram-lhe das mãos e o chapéu voou depois de ter o crânio atingido. O longo azul foi talhando a rua até alcançar o último suspiro daqueles olhos castanhos que, há bem poucas luas, lhe haviam trazido o cheiro verde dos antigos matagais...
Azul de Regiane S. Cabral de Paiva é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Based on a work at www.aspirinasurubus.blogspot.com.br.
Sublime, simplesmente sublime.
ResponderExcluira leveza e a destreza são tuas companheiras. A força trágica concede a este conto um poder q nos leva a transcedencia.
Obrigada por mais este regalo, grandiosa REINA!
Amo-te
Prima ASS
“Regiane, Reina para nós.
ResponderExcluirA cada dia te revelas em suas crônicas e nos teus contos.
Belíssimo, doloroso, espelho de centenas de casos reais.
Cada vez mais sinto maior necessidade de ter o A&U impresso para reler.
Um texto como este seu merece ser relido nos detalhes. Muitas vezes.
Parabéns, minha Reina, nossa Mestre.”
Klas
Valeu Regiane,
ResponderExcluirvocê é uma artista iluminada. Gosto muito dos seus textos.
Um grande abraço.
Socorro Maia